Só no início da alfabetização descobri que o nome da minha avó era Aparecida. Desde meu ingresso no mundo era chamada Donacida. No meu pueril espírito era uma palavra só. Depois vim a fazer grandes descobertas. Que Dona era o nome para se referir a uma senhora com atitude de respeito.
Cida era o diminutivo carinhoso para Aparecida. Seu nome foi homenagem da devoção ítalo-brasileira à Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil. Meu pai, filho primogênito, decidiu homenagear sua mãe e a invocada mãe dos brasileiros, inscrevendo Aparecido no nome do filho. De fato, seu primeiro filho apareceu. Ele, 18 anos. Ela, 15. Primeira namorada, primeira relação sexual, gravidez. Assim me tornei neto da Donacida.
Minha avó casou-se com camponês italiano descendente das famílias de Ferrara, província situada entre Veneza e Bolonha. Meu avô tinha habilidades de ferreiro e marceneiro. Fabricava charretes, faca, facão e instrumentos para a lavoura.
Dona Cida cuidava da família e das plantas. Era apaixonada por flores. Em cada casa onde morou havia um belo e diversificado jardim florido. Lembro de uma que era próximo ao cemitério. Quando alguém passava pelo jardim da Donacida para visitar a memória de seus mortos, chamava por ela no portão e pedia flores para homenagear seus entes queridos. Com incansável paciência, interrompia o que estava a fazer e pegava sua tesoura para recolher rosas, margaridas, dálias, capitão, sempre-viva.
Nas casas da minha infância havia jardim sempre florido e, aos fundos, uma horta farta de alimentos básicos para o dia a dia. Havia uma clara divisão de tarefas: avó cuidava das flores da frente e o avô, da horta nos fundos. Certa vez, a parreira de chuchu estava carregada. Colhi o quando deu para encher uma cesta de vime. Avô disse: ‘porque você não vai vender esta cesta de chuchu na vizinhança? O dinheiro que você arrecadar é seu’. Proposta tentadora e intimidadora: nunca tinha vendido nada.
Questão prática: qual o valor e como pesar? O sábio italiano tinha a solução. Vender por dúzia como se fosse laranja. ‘Mas ninguém vai comprar uma dúzia de chuchu’, indaguei. ‘Então vamos pôr o preço em meia dúzia’, foi a conclusão. Foi minha primeira lição de comercio e voltei para casa com a cesta vazia. Ali aprendi, definitivamente, que cada um deve ganhar o seu pão com o suor de seu rosto.
Além de jardineira, costureira e bordadeira, Donacida fazia um bife de sabor inesquecível. Naquele tempo, carne bovina era a ceia de domingo. Durante a semana, frango, ovos, legumes e verduras. Com sorte, um parente do sítio matava um porco e enviava à família na cidade. Mas, no domingo, depois da missa, havia a incomparável macarronada com bife.
O ritual começava no sábado à tarde. Acompanhava o avô no barbeiro, depois um delicioso sorvete de leite condensado e, por fim, o açougue onde eram vendidas a carne bovina, abatida lá mesmo no frigorífico do Salameiro. O Sr. Salameiro era patriarca da família que produzia um salame típico da região da Calábria. O avô era figura conhecida e, sempre que entravamos, o Sr. Salameiro vinha abraça-lo com efusão. Eu, assistia os bifes serem fatiados em verte sangue.
De volta ao lar, Donacida preparava marinada com cebola, alho e cheiro verde, minuciosamente picados. Limão cravo, colhidos no pé do quintal, compunha o vinha d’alho onde a carne descansava até o almoço do dia seguinte. Um a um, passava o bife no azeite quente enquanto já estávamos à mesa: era para não comer a carne fria. O sabor está na temperatura. O aroma da fritura banhava a todos com o perfume da alegria de um almoço em família. Minha avó expressava o amor na delicadeza de seu gesto cuidador: sua família era o seu maior patrimônio.
Fonte:
Revista Arraso / Festas + Boa Comida
Ano 8; nº 69; 2º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano