A palavra design deriva do latim designare de onde vem designação, marcar a autoria, indicar o criador pela obra criada. Indicação, nomeação, distinção: atos de personificação. Significa também a intenção, o propósito e um certo arranjo de elementos ou detalhes num estilo estético. Desenhar encontra sua matriz etimológica na mesma palavra latina.
Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. Cada um ao nascer é confiado aos cuidados do Genius. No ensaio Profanações (2005), o filósofo italiano Giorgio Agamben fez genial elegia ao deus Genius derivando consequências para se interpretar o labor artístico e, por extensão, um convite a cada leitor encontrar em si o seu deus Genius através do exercício espiritual do cuidado de si.
“Há uma expressão latina que exprime maravilhosamente a relação secreta que cada um deve saber cultivar com o próprio Genius: indugere Genio: É preciso ser condescendente com Genius e abandonar-se a ele; devemos conceder tudo o que nos pede pois, sua exigência é nossa exigência; sua felicidade, nossa felicidade. Genius é a nossa própria vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu origem”
Mais adiante: “Viver com Genius significa viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não conhecimento. Esta intimidade é uma prática mística cotidiana, na qual o Eu, numa forma de esoterismo especial e alegre, assiste sorrindo ao próprio desmantelamento. Genius é a nossa própria vida, enquanto não nos pertence”.
Em 1996, o Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou em Paris, organizou retrospectiva com 79 pinturas de Francis Bacon, dentre elas 16 eram grandes trípticos e 4 obras inéditas. A mostra ressaltou a genialidade do pintor inglês e foi uma expressiva homenagem póstuma, realizada num dos maiores centros da arte moderna ocidental.
Bacon retratou, como ninguém, a angústia existencial de quem sentiu na carne os horrores das duas grandes guerras. O design de genial pintor designou o dilaceramento corporal e espiritual das sociedades modernas. Certa vez afirmou: “gostaria que meus quadros dessem a impressão de que um homem se introduziu sorrateiramente, como um escargot, deixando um rastro de presença humana e de lembranças de fatos passados, como um escargot deixa seu rastro de baba pelo caminho”.
Foi com esta metáfora que mergulhei no turbilhão da mostra no Centro Pompidou. Esta gosma está sorrateiramente presente nas telas de Bacon como sua assinatura, seu design. Massas em decomposição formam figuras em carregada expressão de dor.
Por ocasião de outra exposição em 1998 na Galeria Hayward de Londres, o historiador brasileiro Nicolau Sevcenko comentou: “Bacon é um dos artistas que neste século sondou mais profundamente os modos pelos quais nossa cultura condiciona a percepção do corpo humano. Ele demonstra como nosso olhar opera sob filtro de valores e experiências que seleciona o que vê e o que está excluído de qualquer registro sensorial. Sua obra ameaça de modo desagradável nossos hábitos visuais e relutamos muito em nos reconhecer nela. Ele próprio estabelecia esse desafio de maneira franca e crua. Várias vezes repetiu: ‘se você quer entender a lógica da nossa relação com a carne, olhe bem para o bife no seu prato'”.
O design designa o Genius. Bacon conseguiu, a despeito de tudo e contra todos, entregar-se ao deus que presidiu seu nascimento. Sua arte é referência para representações do corpo na modernidade do pós-guerra. A carnificina dos campos de concentração, da violência e crueldade contemporânea foi retratada em pinturas geniais. Para além da interpretação política em imagens, há na obra deste pintor um convite à reintegração do corpo numa espiritualidade estética.
Márcio Mariguela é psicanalista; graduado e especialista em filosofia; doutor em psicologia da educação pela Unicamp