A vida após o câncer

Entrevista publicada no Jornal de Piracicaba dia 23/11/2014

A vida após o câncer

Filósofo e psicanalista Márcio Mariguela ,em encontro inédito com a médica Adriana Brasil, promovido pelo JP, relata sobre a experiência de superação da doença.

Rubens Vitti Jr.
rubens@jpjornal.com.br
marcio e adriana

Existe um “antes e depois”na vida de uma pessoa após caminhar sob a sombra da morte. Experiências com doenças graves geralmente deixam perguntas que são respondidas ao “cair da ficha” de que é possível sobreviver. Nesta perspectiva, vencer a doença é sair dela transformado em diversos sentidos. No mês em que se destaca a campanha Novembro Azul, para fomentar a prevenção ao câncer de próstata, o Jornal de Piracicaba reuniu dois profissionais gabaritados na área de saúde da cidade em um bate-papo inédito para discutir a vida pós-câncer. A médica santista Adriana Brasil, cidadã piracicabana e diretora clínica da Associação Ilumina — entidade que coordena há seis anos com ações de prevenção ao câncer — se encontrou pela primeira vez com o filósofo e psicanalista Márcio Mariguela, que há seis meses descobriu um câncer de próstata e entrou em uma guerra contra a doença, fazendo todo o tratamento necessário para a cura.

Nesta conversa, Adriana usa de sua experiência clínica para entender como Mariguela superou as barreiras da doença. Ele, que se abre pela primeira vez publicamente para tratar do assunto, utiliza seu aparato profissional e mostra, deforma sincera, como é possível cruzar esse caminho sem se vitimizar. Na primeira parte, Mariguela descreve sua ligação com o câncer com base teórica nas leituras que teve. Na sequência (continuação na página 8), Adriana faz perguntas a respeito da doença, investigando a fundo essa experiência.

Márcio Mariguela — Minha experiência com o câncer tem uma história que vai desde a minha infância. Minha mãe era cuidadora no bairro em que morávamos em Taquaritinga (SP) e não tinha posto de saúde. Ela era a única pessoa que sabia aplicar injeção, era uma espécie de enfermeira, líder comunitária, e cuidava muito de mulheres com câncer. Isso nos anos 1960, começo dos anos 1970. Eu acompanhava tudo. Não tinha um diagnóstico, o que se dizia era “doença ruim” ou “aquela doença”, a palavra câncer não podia ser pronunciada porque era revestida por uma“maldição”, como se atraísse para si a doença, semelhante ao que era a lepra, tuberculose, como se fosse algo contagioso. Historicamente o câncer é revestido por esse fantasma da morte. Qualquer um que passa por essa experiência tem que se confrontar com essa “maldição” que o câncer representa no imaginário social.

A metáfora da guerra é predominante no tratamento de câncer, tudo o que lemos e escutamos é sempre nessa perspectiva. – Márcio Mariguela

O primeiro relato que li sobre o câncer foi na literatura de Susan Sontag, no final dos anos 1970, que teve diagnóstico de câncer e relata no ensaio A Doença como Metáfora (Cia. das Letras). Ela toma o câncer como metáfora e cada um vai significando sua experiência com o câncer de um jeito. Essa ideia sempre me ficou. Depois, comecei a trabalhar com a psicanálise, que toma sempre o sintoma como uma metáfora. O sujeito constrói com seu sintoma um modo de dizer a condição em que ele se encontra, do estado psíquico, o conflito, as angústias que vivencia, as frustrações. De um jeito ou de outro ele acaba produzindo sintomas, do ponto de vista psíquico, que chamamos na psicanálise de convenção somática, que é um determinado nível de angústia, de estresse. O sujeito converte essa angústia em um sintoma corporal. Ele haverá de produzir uma série de sintomas que chamamos de “causas psíquicas”.

Como psicanalista acompanhei muitos pacientes tratando de câncer desde quando recebe diagnóstico e começa o tratamento. São histórias bem sucedidas e outras não tão bem sucedidas, que levaram a óbito. Minha sogra teve um câncer de ovário e útero que foi devastador, em um ano ela faleceu, com 41 anos de idade. Recentemente, em maio, em consulta ao urologista, porque já entrei na casa dos 50, fui fazer um exame de próstata. Na consulta de rotina, o PSA estava normal e no exame de toque tinha algo calcificado na região retal e fui ao proctologista. Fiz a biópsia e o resultado foi um carcinoma in situ (câncer não invasivo).

Recebemos a notícia de um diagnóstico desse e somos catapultados em um vácuo. E agora? O que vou fazer? Bom, fui chorar no colo de uma tia muito ama- da, religiosa, essa foi a primeira alternativa. Depois que ela me acolheu, me disse: “meu filho, você acompanhou tantas histórias de pessoas com essa doença, agora é sua vez de viver o que só escutava. Tenho certeza que depois isso vai te tornar um profissional melhor do que é por ter vivido essa experiência”. Aquilo fez um sentido grande para mim, porque de fato eu conhecia o processo de tratamento, as dificuldades, pelo relato dos meus pacientes, e de repente eu estava em outro lugar, agora era eu quem teria que fazer esse percurso do tratamento. O proctologista que me orientou disse que eu teria de 80% a 90% de chances de cura. Então era uma grande coisa. Disse: bom,entrei em uma guerra com uma chance bem grande.

A metáfora da guerra é predominante no tratamento de câncer, tudo o que lemos e escutamos é sempre nessa perspectiva. O sujeito será bombardeado por radioterapia e quimioterapia e é isso que significará eliminar as células cancerígenas, o tumor. Disse para vários amigos que o que estava me ajudando nesse período foi ter lido Da Guerra, tratado da guerra de Klauss Shvitz, que tem estratégias e táticas. Me coloquei na posição de entrar em uma batalha. Seria bombardeado e teria que me reconstruir depois desse bombardeio, precisava definir minhas armas nessa batalha.

Primeira decisão foi suspender todas as minhas atividades para me dedicar integralmente ao tratamento. Interrompi as aulas, atendimentos do consultório. Tive que fazer dois ciclos de quimioterapia, no começo e no final do tratamento, e 25 sessões de radioterapia. O resultado foi positivo, tem o laudo de que o tumor desapareceu, o tratamento foi bem sucedido, e agora estou no processo de recuperação imunológica e de pele, pois desenvolvi uma rádio dermatite na região pélvica, mas já está indo tudo bem. Voltei ao trabalho, fiz escolhas sobre o que cabe e o que não cabe mais na vida.

Em Filosofia temos um conceito sobre situações limite. O câncer é uma situação limite, assim como outras como perda de alguém querido, aquilo que não desejamos, não esperamos, e que não temos possibilidade de exercer a escolha. Esse conceito situação limite instaura uma descontinuidade na vida. Sua vida é narrada de um jeito até aquele momento. Quando se escreve essa situação-limite, cria-se uma descontinuidade e a partir dali sua vida tem que ser contada de outro jeito, você não é mais o mesmo antes e depois de uma situação-limite. Quando tive o diagnóstico, de imediato, me veio isso. A situação limite vai exigir de mim um esforço muito grande para me dedicar, pois é um tratamento pesado.

Como analista, o que vivi foi que a pior coisa no tratamento de câncer é o sujeito se vitimizar. Se ele se põe nessa condição de vítima, a adesão ao tratamento é muito ruim e tudo o que poderia acontecer de errado acontece. Mas se o sujeito se coloca em posição que chamaria de pró-ativa, aí ele vai se cercar de um aparelho médico, tecnológico, afetivo, religioso. O que determina o curso do tratamento, agora falo pela experiência que vivi e por ter acompanhado muitos tratamentos, é o recurso simbólico que o sujeito tem, muito mais do que as condições físicas que ele possua. Se existe o recurso simbólico que lhe permita enfrentar as adversidades do tratamento, as chances que ele tem são muito grandes.

O que chamo de recursos simbólicos? A fé, o aparato afetivo familiar e de amigos, o quanto de leitura e informação tem sobre a situação que está vivendo. Tudo aquilo que dá à pessoa condições de não cair nessa grande cilada da vitimização. Daí entra a depressão, uma série de fatores que impedem que o sujeito possa se posicionar diante do tratamento de uma forma mais eficaz. Foi isso que fiz, pus à prova tudo o que acompanhava e orientava. Nessa condição de analista, sempre reafirmava com meus pacientes que o câncer, como tudo na vida, tem uma singularidade. A palavra é significante porque recobre uma série de sentidos e significação. Para cada um, esse significado é diferente, cada um vivencia a experiência do câncer de um jeito e isso pode ocorrer com qualquer outra situação da vida. Essa singularidade é importante ressaltar em um trabalho de prevenção, cuidado com o corpo, prevenir-se. Qualquer situação de anormalidade no corpo pode ser diagnosticada de maneira precisa e maior as chances de cura em mãos.

A pior coisa no tratamento de câncer é o sujeito se vitimizar. Se ele se põe nessa condição de vítima, a adesão ao tratamento é muito ruim – Márcio Mariguela

Continuação…

Duas palavras que fazem muita diferença no tratamento dos pacientes: solidão e finitude. – Adriana Brasil

Adriana Brasil — O que conseguimos ver no dia a dia do consultório, na Associação Ilumina, são duas palavras que fazem muita diferença no tratamento dos pacientes: solidão e finitude. Todos se reportam a um momento incrível de solidão, a algum tipo de crise, que você chama de um momento extremo, que é estarmos diante da tão sabida impermanência, da possibilidade de finitude. Todos nascemos sabendo disso, mas como uma evolução do ciclo natural de vida, você planeja e acha que está no controle. Isso passou pela cabeça de todas as pessoas que se depararam com o diagnóstico de possível interrupção da trajetória. Quando chegamos em uma situação dessas o intelecto perde o controle e o emocional vem, então existe a necessidade do elemento mágico, que falamos para os pacientes, que é o elemento neutralizador, acima do intelecto e emocional. Como é vivenciar esses dois momentos? E qual o conceito da vida diante da possibilidade de finitude?

Márcio Mariguela — Confesso que não vivenciei essa experiência da solidão, talvez por uma razão fundamental. A minha mulher amada tem uma parceria tão imensa comigo que tomou à frente todos os assuntos práticos. Nunca me senti sozinho, pois sabia que tinha alguém que sentia mais do que eu o que estava vivendo e que me apoiou de uma forma encantadora. Não poderia ser diferente. Ela foi a grande responsável pelo sucesso do tratamento, por tudo o que fez. E minha filha de 13 anos que me surpreendeu muitíssimo diante disso, chorando junto comigo e ao mesmo tempo com bom humor o tempo todo, foi uma grande companheira. Amigos próximos, muito íntimos, também. Manifestações de carinho, afeto, cumplicidade e solidariedade brotaram de forma revigorante. Sinceramente não tive uma experiência de solidão. Ao contrário desse relato da solidão, eu nunca me senti tão amado em toda minha vida.

Sobre o aspecto da finitude,temos um preço a pagar por estarmos vivos, que é a angústia da morte. Quem não está disposto a pagar esse preço morre antes, isso por diferentes formas, por ter uma atitude suicida diante da vida, atitude de cultivar a dor, o sofrimento. Vejo que não querer pagar o preço da angústia da morte é muito pior do que enfrentá-la. Jacques Lacan (psicanalista francês) tem uma frase, um aforismo dele que sempre me pareceu enigmático: “o pior é o que de melhor pode nos acontecer”. Só agora eu entendi. Porque quando está vivendo o pior, tudo muda, até o próprio diagnóstico. Ainda bem que tive esse diagnóstico agora, em um exame preventivo, de rotina. Tenho esses recursos, a cidade tem um centro de excelência, o Ceon (Centro de Oncologia) do HFC (Hospital dos Fornecedores de Cana de Piracicaba), sob a responsabilidade pelo doutor Alberto Sagarra, uma equipe muito bem afinada que conhece o paciente pelo nome, atende SUS e particular com o mesmo nível de tratamento.

O preço da angústia da morte se paga diariamente, não só porque existe o diagnóstico de uma doença grave. Não é porque alguém diz que você tem um tempo de vida. Esse tempo está predominado no seu nascimento. A Filosofia e a Psicanálise me forneceram que a angústia da morte você vivencia diariamente.

Claro que em uma situação dessa esse “diariamente” se torna “o agora”. Concordo ainda com Michel de Montaigne, filósofo renascentista. Ele diz que aprender a morrer é aprender a viver. Quem não tem medo da morte, vive muito melhor. E não ter medo implica em poder amar a vida a ponto de cuidar-se, ir ao médico, fazer exames preventivos, ter uma prática de vida coerente com o amor que você tem pela vida.

Nos acostumamos com uma linearidade do tempo. Muitos pacientes trazem essa consciência nem que seja por um milissegundo, de uma atemporalidade do viver- Adriana Brasil

Adriana Brasil — Os profissionais que lidam com isso precisam ter uma saída interna com psicanalista também. O ser humano precisa ter respostas para conseguir lidar com a angústia da morte, em todos os sentidos. Mas quem trabalha o tempo todo com isso tem alguns mecanismos. Eu conheço alguns textos de Rumi, poeta sufi. Ele fala que é necessário “morrer antes de morrer”. Isso para mim não tinha sentido até me deparar com algumas pessoa próximas com câncer, alguém da família. E temos uma previsão de uma pessoa com câncer em cada quatro para 2020. Eu corroboro com o que você está falando e pergunto justamente sobre valores. Quando você morre antes de morrer, você morre para seus conceitos. Existe toda uma ressignificação dos valores depois de momentos como esse. Você disse muito do acolhimento. Por isso queria saber o que mudou diante desse “morrer antes de morrer”?

Márcio Mariguela — Nietzsche diz que morremos mais de uma vez na vida e renascemos outras tantas. Isso é muito verdadeiro, porque não se morre uma única vez, morremos muitas vezes, mas renasce também. Hoje eu estou renascendo. Morri de fato, há uma morte simbólica que o tratamento me impôs e me trouxe hoje a possibilidade de fazer escolhas e situações em que dizemos “isso não há mais lugar em minha vida”. Tem coisas que vamos “empurrando”, que incomodam, mas você caminha como se estivesse calçando um sapato apertado. Você vai, os pés doem, mas você caminha. Nesses momentos limites, de morte simbólica, a vida tem outro sentido. Tem que ter. Se você não sai de uma experiência limite diferente do que como entrou, isso não lhe serviu para nada. Pode ter se tratado, se curado, mas sua vida continua do mesmo jeito. Seus valores continuam os mesmos, sua identidade fica engessada e qualquer coisa que aconteça na vida não é suficiente para você ressignificá-la. Como trabalho e vivo nessa perspectiva de ressignificação da existência, então esse trabalho é constante até na hora de morte de fato. A vida te põe em situações de mudança que você diz: “se a direção é essa, vamos para outro lugar”. Tenho uma facilidade grande de mudança, ela não é problema, ao contrário, eu cultivo a transformação. Nesse momento me trouxe decisões que estava protelando.

Adriana Brasil — Às vezes, abrir mão de escolhas antigas é uma sensação parecida com a cura de uma doença grave.

Márcio Mariguela — É disso que o Nietzsche falava. Talvez a experiência do câncer seja a mais contundente para mostrar o quanto essa frase do Nietzsche é verdadeira. Entre o que era antes e o que se torna depois não tem a menor relação.

Adriana Brasil — É uma reinvenção, a figura da Fênix, que tem esse ciclo, e se trouxermos para o cotidiano acontece a cada minuto. Acredito que estar diante da vivência do câncer, seja como paciente, voluntário, médico ou parte da equipe da faxina do hospital, te coloca em uma situação privilegiada, porque está diante de pessoas que estão abrindo mão de um identidade o tempo todo. A Fênix precisa virar cinzas. Ela não pode deixar uma asinha, um biquinho, precisa aceitar a real impermanência. Quando meus pacientes me perguntam: “quanto tempo eu tenho de vida?” Eu falo: “preciso fazer essa pergunta para você. Quanto tempo eu vou ter de vida?”. Porque eu busco viver como se todos os dias fossem meus últimos dias. Eu posso ser atropelada antes de poder operar. Essa impermanência é importante na condução. Se você pudesse deixar uma mensagem para aquelas pessoas que estão diante desse impacto, quando o chão se abre, qual seria?

Márcio Mariguela — Há uma frase de Aristóteles que eu tenho como uma espécie de lema, um estandarte da minha vida, desde que eu o lia nos anos 80. “O homem bom e verdadeiramente sábio é aquele que não se curva diante das circunstâncias, mas sabe tirar delas o melhor proveito”. Eu persigo isso na minha vida, somos atravessados cotidianamente pelas contingências, circunstâncias e diante delas é preciso tirar o melhor proveito. Não há o que fazer diante das circunstâncias se não atravessá-la, porque há sempre uma outra margem do rio, a terceira margem do rio, que é a travessia, como diz Guimarães Rosa. O difícil do tratamento é convencer-se, acreditar de fato que vai atravessar, que está em um momento de travessia, que há uma outra margem e que ele pode chegar lá. Se isso implica um ano, dois anos, dez anos, 20 anos de vida a mais, pouco importa. Mas será que não estamos atravessando a vida, exatamente, desde que nasce até a hora que morre? Não será a vida essa travessia e você o tempo todo, diariamente, nesse processo de atravessamento de um tempo que vai do nascimento à morte? Onde isso vai dar, não importa. O que importa é a paisagem, as pessoas que se encontra no caminho, os laços afetivos que vamos construindo, os que permanecem e os que não permanecem. Aquilo que vai compondo a sua história. A história de alguém é a história da travessia.

Adriana Brasil — Esse momento mágico tem uma relação com viver o presente?

Márcio Mariguela — Fundamentalmente. Porque do passado a gente só pode contar. O futuro é o incerto. O que temos de fato? Só o presente.

Adriana Brasil — Como você disse, nos acostumamos com uma linearidade do tempo. Muitos pacientes trazem essa consciência nem que seja por um milissegundo, de uma atemporalidade do viver. Dentro desse contexto, como o Márcio hoje faz planos?

Márcio Mariguela — Os meus planos são fazer o que mais gosto: viajar. Não sem motivo tenho uma coluna no Jornal de Piracicaba que se chama Livros e Lugares. São minhas duas grandes paixões. Conhecer livros novos e lugares diferentes. O plano que tenho para o resto da minha vida é conhecer lugares que ainda não fui e voltar em outros que eu adoro. E que eu tenha saúde para fazer isso. É a única coisa que quero daqui para frente. Viajar, estar junto com as pessoas que amo e que me amam.

Adriana Brasil — O viajar implica em carregar poucas coisas. Mudou algo para você em relação ao materialismo?

Márcio Mariguela — Não, porque sou um sujeito absolutamente desapegado a qualquer coisa de valor material. Eu só tenho aquilo que necessito para viver com certo conforto e tranquilidade. Trabalho para isso. Nada que se cultua em ostentação ou posse. Isso nunca exerceu em mim algum tipo de atrativo.

Adriana Brasil — Isso foi uma ferramenta sua para esse desapego? Suas escolhas ajudaram nisso?

Márcio Mariguela — Sim. Tudo para mim é tão pouco, tão pouco para mim é muito, como diz a canção. Sempre trabalhei dentro daquilo que é suficiente. Tenho tempo de lazer, de ócio, escrevo. Sempre cultivei isso. Ter um tempo para me dedicar às coisas que gosto e sobretudo ao ócio.

O preço da angústia da morte se paga diariamente, não só porque existe o diagnóstico de uma doença grave. -Márcio Mariguela

Adriana Brasil — Nesta trajetória, houve alguma referência importante em algum momento em relação à espiritualidade?

Márcio Mariguela — Eu digo a você que renasceu em mim uma espiritualidade que eu julgava adormecida. Acho que ela despertou. Uma espiritualidade que para mim significa o cuidado de si. Os gregos definiam o cuidado de si como uma prática espiritual. Esse termo era o cuidado das coisas do espírito. Então essa espiritualidade renasceu sim no sentido desse repertório simbólico. Por exemplo, uma paciente que é umbandista me disse: “vou pedir para meu orixá te ajudar”. Eu disse: “muito obrigado, será bem-vindo. Peça mesmo”. Outro dizia: “estou rezando para você”, agradecia e acolhia essas manifestações de espiritualidade e praticava isso. Eu fui seminarista, quase fui padre, então sempre tive uma prática espiritual. Cheguei ao seminário, na década de 80, marcado por esse cultivo da espiritualidade e isso renasceu nesse momento, é algo que ressurgiu em mim. E onde isso está? Nos artigos que publiquei no JP aos domingos no período em que estive em tratamento, na série que se chama o Tempo e o Templo. Estava escrevendo essa série logo que comecei o tratamento. Narro experiências infantis de visitar igrejas, o quanto eu gosto de igrejas. Nos lugares onde vou, as igrejas para mim são o ponto crucial de visitas. Só interrompi a série quando desenvolvi a rádio dermatite e não pude ficar sentado. Fiquei dois ou três domingos sem escrever. Porque quando eu estava em tratamento a única atividade que mantive foi da escrita. É uma atividade lúdica. Escrever, para mim, é brincar com livros. A resposta à sua pergunta está nessa série de artigos que escrevi.

Adriana Brasil — E que pode se tornar um livro… Existe algum projeto de compartilhar essa experiência com os leitores, com o mundo?

Márcio Mariguela — Sim. Amigos têm insistido nesse ponto. Disse ao Marcelo Batuíra (diretor do Jornal de Piracicaba e Revista Arraso) que talvez essa entrevista seja um momento inicial de falar disso. Porque até então não tinha falado, a não ser para os íntimos. Ao tornar isso público, ao que já era, evidentemente, pois os alunos sabem, enfim, não há nada o que esconder, mas ao aceitar participar desse encontro, talvez seja o primeiro momento de começar a falar disso e quem sabe escrever esse relato de algum jeito.

Adriana Brasil — O escritor é aquele que transborda. É necessário transbordar! E nessa atividade de resgate do físico, eu acredito que haja uma grande oportunidade de ter como dimensionar o quanto as pessoas precisam ouvir. Você não acha?

Márcio Mariguela — É, eu concordo. São experiências e que de algum modo contribuem para alguém que está em situação semelhante. Como essa do livro da Susan Sontag, depois de quase 20 anos voltei a ler o texto dela, que para mim fez muito sentido, que não tinha naquele tempo. Mas quem sabe não sai alguma coisa. Vamos ver.

Adriana Brasil — Queria finalizar perguntando o que mudou em relação à condução da sua trajetória enquanto escritor. Existe toda uma formação filosófica, uma visão intelectual, depois vem a psicanálise na sua vida, trazendo a significância emocional, os desdobramentos emocionais diante do corpo, através das somatizações em toda a trajetória. Você teve vários pacientes com câncer, passando por esse aprendizado. De repente as circunstâncias te trazem essa oportunidade de ter essa vivência. De tão recente, tão amadurecida é a sua história contada. Costumamos ouvir esse relato anos e anos depois que o paciente já passou por essa experiência. Você é como se tivesse vivido dez anos em um. Tem um amadurecimento incrível, pontuado por “instantes santos”, que eu chamo, clarões de percepções diante daquilo que já era: amorosidade, companheirismo, acolhimento, a consciência do todo. Isso impactou sua vida profissional, no sentido, de repente, de utilizar essa possibilidade para transbordar para o mundo a possibilidade de ter outra experiência que não seja a experiência de vítima? Vemos muitas histórias assim. Existe alguma coisa já finalizada?

Márcio Mariguela — Acho que está se fazendo. Me sinto mais liberto, mais leve, mais tranquilo, uma serenidade que eu sempre percebi, mas que só agora eu acho que cheguei a tê-la de fato. Sinto que agora eu conquistei algo que persegui durante muito tempo em minha vida, essa serenidade. Que significa estar em paz consigo, que aquilo que você está fazendo está bem, é o que vou fazer pelo resto da minha vida, no sentido de ser uma experiência de realização. Gosto muito do meu trabalho clínico, de acolher o sofrimento, acompanhar o tratamento psíquico das pessoas. Sempre gostei. O que me dá de imediato essa experiência é uma forte sensação de ter conquistado essa serenidade que eu persegui e me dediquei durante muitos anos da minha vida, desde quando comecei a fazer análise, isso lá em 1988. Sempre buscava essa serenidade que, para mim, é estar bem consigo, no mundo, com as pessoas com quem se está, sensação de que não falta nada. Plenitude! Isso não significa que não vai acontecer mais nada, ao contrário, estou inteiro para o que der e vier.