Encerro essa série com o mais belo canto de Zaratustra: Da Superação de Si Mesmo. É o momento sublime de apresentação do conceito estrutural do livro: vontade de poder. Na lida com as contingências e circunstâncias que a vida me ensina tenho sempre presente este cântico, ecoando como um chamado, uma convocação: é preciso superar a si mesmo. Este é o maior trabalho a ser realizado, o único capaz de fazer da vida uma obra de arte. Cada indivíduo tem a divina tarefa de empenhar todas as suas forças no exercício de superação não só das adversidades externas, mas sobretudo das adversidades internas, o si mesmo.
Assim Falou Zaratustra é um livro revolucionário: transforma radicalmente a perspectiva, o modo de valorar a existência, a escala de valores com as quais se mede o comportamento do bicho falante em seu agir coletivo. Na história da cultura ocidental, o livro-acontecimento de Nietzsche convoca os humanos a serem, de fato, demasiadamente humano. Assumir a humanidade como regra básica de conduta e fazer da condição humana, o que nos constitui, a única virtude. Superar a si mesmo é efetivar, na existência temporal, a consciência da humanidade.
O canto Da Superação de Si Mesmo evoca o livro A Gaia Ciência, publicado em 1882. No ano seguinte, Nietzsche iniciou a composição dos cantos que compõem a primeira parte do Zaratustra. A ciência alegre, afirmativa e inventora de perspectivas, foi a grande aposta do filósofo alemão na superação da ciência positivista de seu tempo. O cientificismo, pensamento hegemônico na Europa no final do século 19, tornou-se na modernidade o único critério da verdade: só é verdadeiro o que pode ser demonstrado pelo rigor lógico e empírico do método experimental.
Com suas obras, o combatente Nietzsche lutou contra o cristianismo (“o platonismo para a plebe”), o cientificismo acadêmico-industrial e o idealismo alemão dominante na filosofia de seu tempo. Na Gaia Ciência deixou clara sua posição: “Nós filósofos não temos a liberdade de separar a alma do corpo como o povo faz, e menos ainda temos a liberdade de separar a alma do espírito. Não somos sapos pensantes, nem aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com vísceras congeladas. Nós temos de parir nossos pensamentos de nossa própria dor e maternamente transmitir tudo o que temos em nós de sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino, fatalidade”.
Zaratustra foi criado para transmitir, maternamente, a vontade de poder como superação de si mesmo. O canto é iniciado com uma aparente oposição: vontade de verdade e vontade de poder. Nosso herói desmancha esta ilusória oposição, encontrando na vontade de verdade (produtora do discurso religioso e científico) a efetivação histórica da vontade de poder: “Chamais ‘vontade de verdade’, ó mais sábios entre todos, aquilo que vos impele e inflama? Vontade de tornar pensável tudo o que existe: assim chamo eu essa vossa vontade. Esta é a vossa vontade, ó mais sábios, uma vontade de poder; e também quando falais de bem e mal e das valorações é sempre a vontade de poder atuante”.
Como vemos, Zaratustra se dirige aos mais sábios dentre todos: os que são reconhecidos socialmente como portadores da verdade e se apresentam como porta-voz da verdade. Denunciando a vontade de verdade, produtora da ciência e da religião, como um disfarce da vontade de poder. “Mas, para que compreendam minhas palavras sobre o bem e o mal, quero dizer-lhes o que a vida me ensinou: a inesgotável e fecunda vontade de poder. Onde encontrei ser vivo, encontrei obediência. Tudo o que vive obedece. Recebe ordem aquele que não sabe obedecer a si próprio. Dar ordens é mais difícil que obedecer. Em toda ordem vi experimento e risco; ao dar ordens, o vivente sempre arrisca a si mesmo”.
Partindo do pressuposto de que obedecer a si próprio é acatar a ordem da vida, Zaratustra, transmitindo esse é o segredo, se tornou o passador do que a vida lhe ensinou, depois de espreita-la até a raiz: “onde encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade de servir encontrei a vontade de ser senhor. Os seres vivos põem em jogo, pelo poder, a vida mesma. Eis a entrega do maior de todos: é ousadia, perigo e jogo de dados com a morte”.
Este segredo é enunciado nos seguintes termos: “Vê, disse-me a vida, eu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo. É certo que vós chamais vontade de procriação ou impulso para a finalidade, para o mais alto, mais distante, mais múltiplo. Minha vontade de poder, caminha também com os pés de tua vontade de verdade. E, apenas onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – eis o que te ensino – vontade de poder”.
Superar a si mesmo é efetivar a vontade de poder, não como exercício de dominação sobre os outros, mas como efetivação da potência vital em si mesmo: princípio ético no qual a vida se projeta para além de si mesma, criando novas e inusitadas formas de conduta e perspectivas de valoração.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 02/nov/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto