Após um intercurso nos cantos de Zaratustra escolhidos por Richard Strauss para compor o Poema Sinfônico para Grande Orquestra, retorno à proposta inicial desta série: comunicar os cantos que me encantam no livro composto por Nietzsche. Admito o escrito como um drama musical. O conceito drama articula duas redes de significações: o cômico e o trágico. Ambas se referem ao período das tragédias gregas no século 5 a.C. e às comédias de Aristófanes, por exemplo.
Assim Falou Zaratustra é um drama musical no qual o personagem título é um herói trágico. No Seminário 7 – A Ética da Psicanálise – Jacques Lacan definiu a figura do herói por contraste com o homem comum: “Não os distingo como duas espécies humanas – em cada um de nós há a via traçada para um herói, e é justamente como homem comum que ele a efetiva. O herói se guia por todas as paixões onde o homem comum se atrapalha, com a ressalva de que nele elas são puras e que ele se sustenta inteiramente nelas. No ato, o herói libera seu próprio adversário (a morte)”. Zaratustra realiza o percurso desta via traçada do homem comum ao herói. Ele é um herói porque sabe que não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço de acesso ao desejo. O herói situa-se entre duas mortes: a de fato e a consciência dela. Consciente da morte inexorável, o herói escolhe viver em liberdade.
Indico e comento três cantos de Zaratustra onde encontro esta definição de herói trágico: Dos Desprezadores do Corpo; Das Mil Metas e da Única Meta; Da Superação de Si Mesmo. Estão contidos na primeira parte do livro e foram escritos em 1883, data de falecimento do amigo (e inimigo) Richard Wagner. Zaratustra é o livro que simbolicamente inscreve a libertação de Nietzsche da tutela do drama musical de Wagner e da filosofia de Arthur Schopenhauer.
Na carta de 1883, ao amigo Peter Gast, Nietzsche escreveu: “talvez goste de saber que vou mandar imprimir um livro bem pequeno, cem páginas no máximo. Mas é o melhor dos meus livros e com ele me libertei de uma pedra que pesava grandemente na minha alma. É o mais sério dos meus livros e, ao mesmo tempo, o mais alegre. É um livro para todos e para ninguém”. Qual pesada pedra que esmagava a alma do filósofo? A decepção com a conversão de Wagner ao cristianismo; e o pessimismo da filosofia de Schopenhauer, materializada no livro O Mundo como Vontade e Representação, publicado em 1819.
Dos Desprezadores do Corpo é o sublime canto em louvor ao corpo definido como a grande razão e ao mesmo tempo o mais contundente ataque à consciência racional, definida como pequena razão. Nietzsche subverte toda a tradição filosófica ocidental desde Platão até o idealismo alemão do início do século 19, representado na filosofia de Friedrich Hegel. Corpo e consciência (alma/espírito) foram cindidos na história da cultura ocidental. Coube a Zaratustra o trabalho de coser esta cisão: “Todo o meu eu é corpo e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para um algo no corpo, diz o espírito liberto. O corpo é a grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também sua pequena razão que chamas ‘espírito’, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão”.
Definindo esta premissa, Zaratustra passa ao ataque: “Aos que desprezam e depreciam o corpo tenho algo a dizer. O fato de desprezarem constitui o seu prezar. O Si-mesmo (corpo) criador criou para si o prezar e o desprezar, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou para si o espírito, como uma mão de sua vontade”. No ato de desprezar o corpo encontra-se atuante a pulsão de morte: afastar-se do corpo é desejar a morte como libertação dos desejos; desprezar o corpo é negar a vida terrena em nome de uma promessa de salvação e felicidade pós-morte.
Os desprezadores do corpo não são capazes de ultrapassar, ir além dos ideais que normatizam os valores morais: “Já não são capazes de fazer o que mais desejam:- criar para além de si. Preferem perecer e por isso vos que desprezam o corpo se irritam com a vida e a chamam de fardo pesado, se irritam com a terra e a chamam de calvário. Há uma inconsciente inveja no oblíquo olhar do vosso desprezo. Não seguirei vossos caminhos. Não sois, para mim, pontes para o super-homem!”.
Aceitar que a alma é um instrumento (musical ou artesanal) e um brinquedo do corpo tem implicações éticas da maior relevância política. O corpo é um bem inalienável e, portanto, cada indivíduo, em sua radical singularidade, deve assenhorar-se de seu próprio bem e não ficar tutelado pelos ideais que promovem o desprezo do corpo.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 19/out/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto