Zaratustra, o canto trágico de Nietzsche – 4

zaratrusta 4O vale de Engadina, região do Alpes em Grisons (Suíça) é a pátria de Zaratustra. Lagos, montanhas e ilhas constituem o cenário dos cantos que compõem o livro Assim Falou Zaratustra. Ao sentenciar no Prólogo que o super-homem é o sentido da terra e denunciar todos os que renunciam a terra para esperar a felicidade plena prometida para além-da-morte  encontramos o tom da composição do drama musical que representa o livro: “Eu vos ensino o super-homem. O super-homem é o sentido da terra. Eu vos imploro irmãos, permaneça fiel a terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Eles envenenam a vida com a crença de uma outra vida além da morte. São desprezadores da vida”.

No Poema Sinfônico para Grande Orquestra, homônimo ao título do livro de Nietzsche, o compositor Richard Strauss escolheu, além do magnífico Prólogo, oito cantos do Zaratustra para musicar. O critério adotado na escolha demonstra certa perspectiva e permite seguir o fio condutor da interpretação que ele fez do livro. Strauss iniciou seu poema com o alvorecer (hino em louvor ao sol) e concluiu com o “Canto do peregrino noturno” – penúltimo canto da terceira parte do livro. O movimento musical do Poema Sinfônico segue a temporalidade da aurora ao crepúsculo. O ouvinte é convocado pela música a compor dois quadros impressionistas com as cores da aurora e do crepúsculo. Entre os dois tempos, transcorrem os ensinamentos do personagem título.

Atendendo à solicitação de um leitor desta coluna, destaco (hoje e no próximo domingo) os cantos escolhidos por Strauss na composição do seu poema musical. Comento o tema principal de cada um deles e sua relevância na atualidade. Lembremos o predicado ao livro atribuído pelo próprio autor, parece-me que Strauss seguiu à risca: “Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como uma música; certamente um renascimento da arte de ouvir era precondição para ele; entre minhas obras ele ocupa um lugar à parte; com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é o livro mais elevado que existe: autêntico livro do ar das alturas”.

Na sequência, os cantos escolhidos. “Dos Transmundanos” é 3º canto da 1ª parte e define com precisão o alvo da crítica nietzschiana: aqueles que negam a vida terrena para afirmar uma vida ultraterrena, os que desprezam a vida corpórea para enaltecer a vida espiritual, os que ainda insistem em representar a existência e ditar regras morais segundo o dualismo platônico que dividiu e separou o corpo da alma, todos que pensam o corpo como cárcere da alma. Estes são os transmundanos, os que vivem esperando a redenção que virá depois da morte. Os ultraterrenos são apontados como niilistas ressentidos, pois reduzem a vida terrena a um nada de sentido e significação. Em seus discursos, os transmundanos insistem em dizer que a vida não vale nada – uma vez que a morte aniquila todo e qualquer valor. Se a vida não vale nada (como pregam os niilistas), nada vale mais do que a vida, proclama Zaratustra.

“Dos grandes acontecimentos” é o canto em que Zaratustra denuncia o homem do livre arbítrio como a doença epidérmica da terra: “A terra, disse ele, tem uma pele; e essa pele tem doenças. Uma delas chama-se homem”. Aqui é o homem inventado pelo Estado democrático do direito civil e pelas Igrejas de todos os matizes que pregam o melhoramento da espécie humana pela repressão e denegação da vida como ela é. Também eles exigem renúncia em prol da coletividade.

“Das paixões alegres e dolorosas” canta a vida pelo amor fati: dizer sim às alegrias e tristezas, ao prazer e a dor. O amor fati não é um estado de resignação, conformação ou adaptação. Amor fati é a virtude mais forte, pois permite situar-se na vida pelo desejo de superação e ultrapassamento das circunstâncias e contingências. Viver é ser capaz de superar as adversidades efetivando a vontade de poder. Desejar a vida como forma afirmativa da dor e não com tentativas desesperadas de evitá-la a qualquer custo. Os ressentidos querem extirpar a dor da existência numa típica posição do ansioso que sofrem antecipadamente por não querer sofrer. A consciência do sofrimento é parte integrante da condição humana.

“O canto dos sepulcros” (também traduzido como fúnebre) é um retorno às memórias que constituem o passado. É o canto onde a pergunta pelo ser no tempo presente é remetida ao tempo passado: quem sou (presente), só pode ser respondida por quem fui (passado) e o que desejo ser (futuro). “Ó imagens e aparições de minha juventude! Ó olhares de amor, momentos divinos! Morrestes depressa para mim! Hoje me lembro de vós como um de meus mortos”.

Não se trata aqui de uma posição melancólica em relação ao tempo de juventude. Ao contrário, é encontrar na própria história a justificativa para responder sem vacilo: quero viver tudo o que já vivi, sem tirar nem por, todas as alegrias e sofrimentos, todos os sabores e dissabores? Sim ou não? Não há meio termo ou possibilidade de negociação. Afirmar a vida como ela é – dizer sim à própria história vivida, pois hoje sou o que já vivi e o que quero viver. O quer viver é a potência que conduz cada indivíduo a superar suas próprias limitações: projetando a vida no mais-além do sofrimento.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 28/set/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto