Tenho predileção em conhecer as diferentes invocações à Maria, mãe de Jesus. Na vasta extensão histórica do cristianismo, na mais diferente realidade cultural, a Virgem Maria é objeto de devoção como símbolo da função materna e, por extensão, da própria família. Desde a concepção, em dogma imaculada, até sua assunção ao céu, a presença da fé e crença numa mulher que deu à luz ao reconhecido filho de Deus é cultuada em múltiplas imagens e atos de nomeação.
No povoado de São Miguel dos Milagres, litoral norte de Alagoas, existe um pequeno templo no lugar mais alto daquela região. Todo pintado de azul celeste, faz bela composição com o céu marejado e o vasto campo de coqueiros. Aos pés da igrejinha azul, duas fileiras de casebres se esparramam margeando a estrada e desenhando a geografia litorânea até a divisa com Pernambuco.
No altar mor, a imagem da Virgem Mãe do Povo com o menino Jesus ao colo, estende o braço direito num gesto e expressão que demonstra acolhimento e benção. A escultura, provavelmente feita em Portugal no século 19, apresenta Maria com cabelo alongado sobre o ombro direito e ornado por uma coroa prateada. Seu rosto demonstra traços de uma mulher do povo/ado com um detalhe singular: brinco pingente verdadeiro. Sim, um par de brincos define a composição. Primeira imagem (em escultura) de Maria com brincos que conheci.
Em minhas viagens procuro visitar igrejas que encontro abertas pelo caminho. Tanto os monumentais templos da cristandade como pequenas capelas em diferentes povoados, contém um vasto acervo artístico e sólida raiz antropológica da religião. Observador cultivado, busco traços/marcas que identificam a realidade cultural em que estou vivenciando como viajante. Visito igrejas tal como visito museus.
Relato uma epifania estética na viagem pelo sul da Espanha, na região da Andaluzia. Chegamos em Granada no feriado de Santos Reis com um único propósito: visitar o Palácio Alhambra e a Catedral. Nesta cidade pode-se ter a exata proporção da presença da realeza na Península Ibérica. No século 8 o Mar Mediterrâneo estava sob controle dos árabes-muçulmanos. Dominando todo o norte da África, atravessaram o estreito de Gibraltar e conquistaram os principais rios no sul da Europa.
Isabel I de Castilha e Fernando II de Aragón assumiram o poder no final do século 15, impondo a unificação da Espanha. Allambra tornou-se sede do poder aristocrático cristão. Os árabes-muçulmanos foram mortos, expulsos ou subjugados pela conversão ao cristianismo. A Andaluzia tornou-se as terras dos reis católicos. Transformada em Casa Real e sede da Capitania Geral do Reino de Granada, Alhambra passou por reformas e ampliação. Capturados pela beleza harmônica entre os arabescos em estuque e os azulejos, os reis católicos souberam preservar a riqueza deste patrimônio árabe na cultura do sul da Europa. Conta-se, por exemplo, que foi na Sala de los Reyes que ocorreu a rendição e lá também, Cristóvão Colombo recebeu a ordem real para embarcar para a América.
A catedral de Granada iniciou sua construção em 1523 como extensão da Capela Real onde se encontra o cenotáfio dos reis Fernando e Isabel. Devota fervorosa, a rainha promoveu ampla reforma na igreja espanhola impulsionando o processo de catequização dos povos ameríndios. Admiradora apaixonada da pintura flamenga, colecionou um tesouro artístico ímpar dos séculos 14 e 15 que estão expostos na sacristia da capela.
Em visita ao acervo, uma tela despertou-me estranhamento ímpar: a Virgem Maria está amamentando o menino Jesus com o seio desnudo; o garoto interrompe o deleite, vira em torção, e fixa o expectador com olhar intrigado. Vacilava entre olhar o belo seio da mãe com gotas de leite a escorrer pelo mamilo e o rosto inquiridor do filho que foi interrompido no seu ato.
A devoção dos espanhóis à Virgem do Leite foi impulsionada pela rainha Isabel e se tornou tema pictórico predominante no período da Contra Reforma na Espanha e Portugal. A imagem de Maria amamentando o menino Jesus com o seio desnudo tornou-se ícone da maternagem e invocação protetora dos vínculos familiares. Através deste ícone, o imaginário familiar cristão foi sedimentando seus ideais na cultura do sul da Europa.
Marcado, desde Granada, pelo efeito inquietante da imagem da Virgem do leite, meu olhar estava dirigido, no passeio pelo Museu do Prado em Madri, em conhecer as diferentes representações deste tema mariano no barroco espanhol. Um feliz encontro com telas e esboços de Miguel Alonso Cano saciou meu desejo.
Alonso Cano adquiriu o aprendizado artístico na oficina do pai, carpinteiro escultor em Granada. Em 1614, se mudou para Sevilha com o desejo de ser aprendiz de Francisco Pacheco, mestre renascentista no sul ibérico. Por lá, iniciou sólida e duradoura amizade com Diego Velásquez. Versado na arte aprendida com o pai, foi contratado para construir retábulos nas igrejas de Sevilha. Embora fosse mais conhecido como escultor, em 1630 presidiu o Sindicato dos Pintores – revelando o respeito e reconhecimento de seus pares.
As composições dramáticas de temas sagrados e profanos fizeram de Alonso Cano um mestre na pintura arquitetônica. A tela “San Bernardo y la Virgen” é uma magnífica representação iconográfica da Virgem do leite diante de seu maior admirador: São Bernardo, monge reformador da Ordem de Cister e fundador da Abadia de Claraval. A cena escolhida pelo pintor demonstra a interpretação que fez de um tema clássico na cultura de seu tempo com uma erudição sem igual: escolheu o último canto da Divina Comédia de Dante Alighieri para situar um suposto milagre ou êxtase místico narrado pelo monge Bernardo.
Dante proclamou louvores à Virgem Maria através de um canto atribuído ao monge: “No Céu, és a meridiana luz da caridade; na Terra, a fonte viva da esperança para a frágil humanidade! Senhora, és tão grande, tão poderosa, que pedir graças ao Céu, sem teu auxílio, é o mesmo que desejar voar sem dispor de asas! Tua benignidade não socorre unicamente a quem ora, pedindo; mas antes, vez sem conta, antecipa o pedido e a prece”. A devoção mariana é a força revolucionária do cristianismo na Contra Reforma. Bernardo foi o ator principal neste enredo que fortaleceu o catolicismo diante dos ataques do movimento protestante.
O tratamento pictórico utilizado por Alonso resgatou as técnicas da pintura renascentista, compondo belo triângulo entre a imagem da Virgem do Leite num retábulo, o piedoso monge à direita e na base esquerda, a presença do cardeal Sandoval y Rojas, arcebispo de Toledo. Presença testemunhal do milagre: do seio da Virgem amamentado seu filho um jorro de leite atravessa o triangulo até a boca de São Bernardo. O expectador vê, em primeiro plano, o jorro de leite atravessando em linha o triângulo. No plano estético, a eroticidade do seio desnudo da Virgem do leite foi revestida de uma sacralidade impressionante.
Que a Virgem do Leite abençoe e proteja os jovens casais para que consigam conjugar o amor declarado em público nos festejos do casamento, com as demandas do cotidiano a exigir renovação permanente dos votos de companheirismo e solidariedade.
Revista Arraso / Noivas; Ano 7; nº 49; 1º semestre/2015; publicação do Jornal de Piracicaba; ilustração: Maria Luziano