Uma gata no divã de Freud

Gata no divã de Freud

A relação amorosa dos humanos com os animais domesticados é um capítulo curioso na história da cultura. Ao que tudo indica, os cães têm preferência neste convívio. As imagens de humanos com cachorros foram retratadas na arte pictórica e é um tema recorrente na literatura, no cinema, em quadrinhos (Milu, o fiel companheiro das aventuras de Tintim). Na cultura oriental, os gatos são animais sagrados. No ocidente, estão associados às representações do mal. Gato preto então, é depositário do ódio e terror.

Os humanos domesticaram diferentes animais com propósitos distintos. O cavalo, camelo, boi, cabra, ovelha e a lista se estende por toda vastidão de território ocupado pelos domesticadores. Na lista, há os chamados bichos de estimação, aqueles que são cuidados por puro prazer e que mobilizam afetos amorosos.

Pássaros, répteis, peixes, caninos e felinos são exemplos de animais de estimação. Nesta categoria, os que interagem diretamente no emocional sendo tratado como membros integrantes da família. Outros, tem função ornamental. Cães e gatos são disputados em ranking de melhor amigo dos humanos. Os gateiros, os cachorreiros e os quem amam ambos indistintamente.

Os que preferem a companhia dos cães, listam todas as virtudes do aclamado mais fiel de todos os amigos. Os amantes dos gatos não ignoram o poder sedutor de um felino. A eles cabem ocupar a função de amante diante do objeto/gato amado. Os cães, ao contrário, nos instalam na função de amado. Eles nos amam, incondicionalmente.

No diálogo O Banquete, o filósofo Platão cartografou a relação amorosa em duas posições: érastès, o amante; e o érômémos, o amado. Para que o amor (Eros) se efetive é preciso, no mínimo, dois lugares. Esta hipótese interpretativa ocorreu-me ao ler um caso pitoresco na mais recente biografia do criador da psicanálise, “Sigmund Freud: na sua época e em nosso tempo” escrita por Elisabeth Roudinesco.

Já era sabido a paixão de Freud pelos cães e a falta de apreço pelos gatos. Há relatos de pacientes que frequentaram seu divã narrando a presença do casal de chows-chows na cena analítica. Eles se reproduziam no apartamento da família Freud e os filhotes doados aos que se tornaram íntimos, como a Princesa Marie Bonaparte e a poetiza Hilda Doolittle.

No ensaio Introdução ao Narcisismo (1914) Freud escreveu: “o narcisismo de uma pessoa tem grande fascínio para aquelas que desistiram da dimensão plena de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal”. Como exemplo deste fascínio, citou “a atração de alguns bichos que parecem não se importar conosco, como os gatos e os grandes animais de rapina”. Numa carta, Freud disse não apreciava a esposa de seu fiel companheiro Max Eitington: “Ela tem a natureza de um gato e tampouco os aprecio. Ela tem o encanto e a graça de uma gata, mas não é um bichano adorável”.

Roudinesco reconstruiu a cena, datada em 1913, quando Freud encontrou uma gata dormindo em seu divã. Pela fresta da janela do consultório a gata passou a visitá-lo com frequência e, aos poucos seduziu o médico vienense. Reconhecendo a atração de Freud pelos cães e o quanto rejeitava os gatos, considerado um animal demasiado feminino e narcísico, a autora destacou os efeitos deste inesperado encontro na escrita do ensaio sobre o narcisismo.

A gata narcísica visitante, “ignorava sua presença e se esgueirava prazerosamente por entre os objetos de sua estima coleção de antiguidades. Obrigado a reconhecer que ela não causava nenhum dano às coisas amontoadas no consultório, começou a observá-la, amá-la, alimentá-la. Ficava a observar seus olhos verdes, oblíquos e gelados e julgava seu ronronar a expressão de um verdadeiro narcisismo. Com efeito, precisava insistir para ela prestasse atenção nele”.

Fonte:
Revista Arraso / Design & Decor
Ano 9; nº 73; 2º semestre/2017
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano

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Uma gata no divã de Freud
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Uma gata no divã de Freud
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A relação amorosa dos humanos com os animais domesticados é um capítulo curioso na história da cultura. Leia aqui sobre a relação com os animais.
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