O sonho de Goethe em Bolonha – 2

“Todos os sonhos de minha juventude, vejo-os agora ganhar vida. Nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu, mas os velhos tornaram-se tão definitivos, tão vivos, tão coerentes, que poderiam passar por novos. E que efeito curativo tem sobre minha moral viver em meio a um povo tão sensual: os italianos estão demasiado distantes de nós, e o contato com eles é, para um estrangeiro, árduo e custoso”.

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No instante deste relato, Goethe relembra o sonho produzido um ano antes de iniciar a Viagem à Itália. A estadia em Veneza foi um verdadeiro aperitivo no grande banquete que representou a incursão do inventor do romantismo alemão em território italiano. As experiências, sensorial e espiritual, vivida entre gôndolas e a encantadora arqueologia estética fez despertar uma trama significação determinante no percurso da viagem.

“Estava escrito na folha que me cabe do livro do destino que, ao cair da tarde de 28/setembro/1786, avistaria Veneza, essa maravilhosa cidade insular, essa república de castores. Veneza já não é para mim uma mera palavra, um nome vazio a angustiar-me com tanta frequência – a mim, o inimigo mortal das palavras ocas”.

As descrições dos estados afetivos vivenciados durante a viagem se alternam, com igual literalidade poética, os aspectos geográficos, antropológicos, arquitetônicos e estéticos. No todo, o relato é um guia instrutivo, de caráter pedagógico, para si mesmo, aos amigos na Alemanha e, por extensão, aos possíveis leitores. As anotações diárias da experiência de estrangeiro alemão em solo italiano foram redigidas para publicação em Viagem à Itália em 1816 – 25 anos depois do vivido.

“De Veneza, muito já se disse e publicou, de modo que não desejo me alongar em descrições: registro apenas como eu a senti. Aquilo de que mais me sinto premido a falar é do povo veneziano que possui uma existência imperiosa e involuntária. Essa gente não se refugiou nestas ilhas por divertimento, nem foi o acaso que decidiu os demais a se juntarem a ela; a necessidade os ensinou a procurar sua segurança em local tão desfavorável, local este que tornou esse povo tão inteligente quando todo o norte da Europa era ainda prisioneiro das trevas. O veneziano estava fadado a se tornar um novo tipo de criatura, assim como também Veneza só é comparável a si própria”.

Após um passeio pelo Grande Canal, contornando a ilha de Santa Clara, entrando pelas lagunas, pelo canal da Giudecca, chegou a praça São Marcos sentindo-se um soberano do Adriático. Revive uma lembrança infantil: “lembrei-me então do meu bom pai e de seus relatos sobre Veneza. E não será assim comigo também?”.

Identificado com o relato do pai, o filho se põe então a relatar também. E, após a partida de Veneza, já em território da Bolonha, o sonho tido e agora relatado adquiriu plena significação ou de sentido pleno – como se diz em psicanálise.

O relato do sonho é precedido de uma experiência mística e o anúncio de que Goethe estava escrevendo da peça Efigênia, sua companheira de viagem. “Encontrei na Santa Ágata retratada por Rafael a imagem de minha Efigênia. Guardei muito bem essa imagem no meu espírito e para ela lerei minha heroína trágica, sem permitir que ela diga uma única palavra que essa santa não desejasse pronunciar”.

Eis o sonho: “Sonhei que estava a bordo de um barco relativamente grande e atracava numa ilha fértil e de farta vegetação e sabia que ali encontraria os mais belos faisões. De imediato, pus-me a negociar com os habitantes desta ilha a fim de adquirir a ave. Traziam aos montes para o barco. E assim parti enumerando os amigos para os quais iria relatar a conquista de coloridos tesouros. Por fim, desembarcando num grande porto, perdi-me entre navios com mastros imensos, subindo de convés em convés procurava um lugar seguro onde atracar meu próprio barco”.

Reconhecendo que o sonho é a realização de desejos, concluiu o relato: “Me delicio com estes delírios oníricos, os quais, por terem origem em nós mesmos, hão de possuir uma analogia com o restante de nossa vida e com nosso destino”.

O sonho se fez ato na viagem à Itália. Em diversas passagens relatadas ao longo da viagem, Goethe fez referência à metáfora contida no sonho. Na partida de Nápoles para Sicília, por exemplo, afirmou: “essa noite, sonhei de novo com minhas ocupações. De fato, eu não poderia descarregar meu barco de faisões em outra parte que não em vossas (os amigos de Weimar) praias. Possa ele ser carregado condignamente!”.

A viagem à Itália é, de fato, um carregamento no espírito de Goethe. O faisão do sonho é metáfora da nobreza identificada nos objetos e lugares da antiguidade greco-romana, revista pela interpretação dos artistas no período renascentista. Na pintura figurativa do século 18, o faisão é um ícone da nobreza. O barco lançado numa odisseia existencial: a formação estética do maior gênio da literatura moderna.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 15/fev/2015