O desejo insiste, o sintoma resiste. A muralha de resistência que construímos para nos proteger do desejo denota os sintomas do sofrimento psíquico. Pedra por pedra, tijolo por tijolo, a educação moral vai sedimentando as resistências, opondo barreiras e defesas contra o ataque dos desejos. É neste conflito irremediável e deveras inconsciente que nos tornamos sujeitos. O desejo não tem objeto definido, somente objetivo: ofertar experiências de prazer. Há insistência do desejo em cumprir seu objetivo: o prazer da realização. A realização do desejo ocorre em ato não em intenção. O plano da intencionalidade é habitado pela vontade e o desejo não é vontade porque é sua propriedade desejar para além da vontade.
Por vezes, ouvimos: “Se dependesse da vontade eu não desejaria”. O desejo se faz presente à revelia da vontade. Como a vontade é governada pelas normas, preceitos morais e pelos códigos de conduta moral, o desejo só pode se realizar no ultrapassamento da vontade. Esta representação do desejo é recorrente na história do pensamento ocidental: desde os clássicos da epopéia grega, nos poetas trágicos e no alvorecer da filosofia de Platão e Aristóteles. Na antiguidade, a palavra “hormé” designava o desejo como um impulso violento e impetuoso, um ardor e apetite que conduz os humanos a se precipitar sobre alguma coisa para agarrá-la, tomar posse, apropriar-se. Nos dicionários vernáculos se sucedem os estados de desejo: querer, ambicionar, apetecer, ansiar, anelar, aspirar. Desde então, o desejo é concebido como carência: vazio que tende para fora de si em busca de preenchimento.
No entanto, é na gênese do pensamento moderno, na escrita do filósofo inglês Thomas Hobbes de Malmesbury, que o desejo encontrará seu mais eloquente elogio. Nas páginas do Leviatã, publicado em 1651, se encontra o fundamento da moderna concepção do desejo. No capítulo VI, “Da origem interna dos movimentos voluntários vulgarmente chamados paixões; e da linguagem que os exprime”, a natureza humana é definida pela capacidade de desejar. Há um “conatus” (palavra latina, traduzida por “esforço”) que nos impulsiona à direção de um ato de apropriação de algo ou alguém. Tal impulso também conduz ao estado de aversão: quando o esforço é para evitar alguma coisa ou alguém.
Todo movimento do desejo tende ao encontro de um objeto, constituído pela falta. O desejo advém de uma falta-a-ser: não há um único objeto que possa satisfazer plenamente o desejo. Ele se realiza de forma parcial, fragmentária e aos pedaços. Desejo e aversão: movimentos voluntários, vulgarmente chamados paixões. Donde a conclusão de Hobbes: “Do que os humanos desejam se diz também que o amam, e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem aversão. De modo que o desejo e o amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência de objeto, e quando se fala em amor geralmente se quer indicar a presença do mesmo. Também por aversão se significa a ausência, e quando se fala de ódio pretende-se indicar a presença do objeto”.
Este pressuposto é retomado no final do século XIX pelo médico vienense Sigmund Freud. Ao estabelecer a equivalência entre sujeito do desejo e sujeito do inconsciente, o inventor da psicanálise desnaturalizou a antropologia hobbesiana. O desejo não é um instinto e sim uma pulsão. O humano é um ser desejante na exata medida que se apresenta desejável aos outros. É como objeto do desejo do outro que entramos no mundo e por esta condição alienante inexorável, nos tornamos sujeito do desejo. O sujeito do inconsciente é assujeitado ao desejo.
Para Freud, os neuróticos tinham o desejo estrangulado: era preciso restituir possibilidades para o desejo ser nomeado e reconhecido. O estilo de clínica inventado parte de um princípio ético fundamental: não há saber a priori para dizer do desejo. O desejo é puro ato que convoca nomeação. Sendo a linguagem marcada pela impossibilidade de nomear plenamente o desejo, o sujeito moderno advém nas formas inventivas de se tornar livre e responsável por seus desejos.
Artigo publicado na Revista Arraso / Estilo – Piracicaba – Ano 5, nº 31, 2013