O desejo de Goethe em Roma – 3

Após o estado de encantamento vivido na Capela Sistina, diante da escultural pintura de Michelangelo, Goethe se dirigiu à Basílica de São Pedro em Roma, “iluminada pela mais bela luz de um céu límpido, claro e visível em sua totalidade. Fruidor que sou, deliciei-me com a grandeza e o esplendor, sem deixar-me desviar por um gosto fastidioso e racional, reprimi qualquer juízo crítico. Apenas tive o prazer com o prazeroso”.

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Roma é o encontro marcado com desejo de Goethe, acalentado desde a infância. Após os desdobramentos, político e moral, de seu livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, decidiu partir em Viagem à Itália. De Verona à Sicília, o escritor alemão percorreu o território italiano de norte a sul e vivenciou uma verdadeira odisseia existencial.

Roma é um significante produtor de significações pois havia se transformado para Goethe “numa espécie de doença da qual apenas a visão disto tudo e minha presença aqui poderiam curar-me. O desejo de conhecer este país estava mais do que maduro; e realizado este desejo, a perspectiva de rever os amigos e a pátria voltará. Levarei comigo tantos tesouros não para proveito próprio, mas para que sirvam de guia e estímulo para mim e para outros também, e pela vida toda”.

Do telhado da Basílica contemplou Roma numa sublime descrição estética: “é admirável ver em miniatura a imagem de uma cidade bem construída. Casas, lojas, fontes, igrejas e um grande templo, tudo suspenso no ar, e lindos passeios entre as construções. Não soprava sequer uma brisa e uma porta nos conduziu às cornijas da cúpula. Lá do alto, avistei o Papa Pio 6º a caminho de suas orações da tarde. Assim, nada nos faltou ver na Basílica.”

Alguns dias depois, retornou à Capela Sistina para rever a monumental pintura de Michelangelo. O impacto da primeira vista deixou o escritor em estado de levitação. Pediu que abrissem a galeria para contemplar o teto numa perspectiva singular da obra-prima: “o genial Michelangelo conquistou-me de tal maneira que, no momento, nem mesmo a natureza me apetece tanto, já que não posso vê-la com tão grandes olhos quanto os seus. Quem dera houvesse um jeito de podermos fixar essas imagens na própria alma! Tudo o quanto eu puder apanhar, ao menos em termos de gravuras e desenhos reproduzindo sua obra, vou levar comigo”.

Os leitores que acompanham essa série poderão encontrar neste relato, o reaparecimento da metáfora do sonho que teve com o barco carregado de faisões. Goethe recolhia reproduções das obras dos mestres do renascimento italiano. Chegou a contratar um jovem pintor, com exímio talento no desenho, para o acompanhar no percurso da viagem, registrando as imagens dos lugares e cenas cotidianas dos personagens.

A convivência com as coisas da arte exerceu sobre ele um poder transfigurador: “Esses magníficos objetos de arte são para mim como novos conhecidos. Alguns se apoderam de mim com tanta violência e tornam minha alma incapaz de ver algo além. E quando sou capaz de me recuperar do impacto, de novo uma quantidade imensa desses objetos me ataca por todos os lados e, a cada passo que dou, cada um deles demandam para si o tributo da atenção exclusiva. Como escapar? Não há outra maneira senão deixar pacientemente que tais objetos atuem sobre mim”.

Ao ser afetado pelos objetos de arte, Goethe permitiu que ocorresse consigo uma transformação espiritual: “considero o dia em que cheguei a Roma como a data do meu segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento”.

Na carta de 13/12/1786 à baronesa Charlotte von Stein, escreveu: “Roma é um mundo, e seriam necessários anos para que se pudesse começar a apreende-la. Como são felizes os viajantes que apenas veem e se vão. É preciso renascer em Roma e então as ideias que se tinha antes serão vistas como sapatinhos de criança. O mais comum dos homens faz-se alguém aqui, ou pelo menos adquire uma compreensão incomum de sua existência”.

Num balanço contábil, típico de final de ano, retornou ao tema do segundo nascimento: “o ano que passou foi o mais importante da minha vida até agora; posso morrer ou viver ainda mais algum tempo – qualquer que seja o caso foi bom. O renascimento que me transforma de dentro para fora segue seu curso. Conceda-me o céu que ao retornar à minha pátria junto aos meus amigos, possa extrair as consequências morais e estéticas desta minha viagem às terras italianas. Meu senso moral vem passando por uma grande renovação”.

No início de janeiro de 1787 anunciou: “finalmente concluí a segunda versão da peça Ifigênia em Táuris”. A escrita poética desta obra carrega as marcas de sua estadia em Roma e, ao mesmo tempo, é a descrição do seu renascimento. Ao reinterpretar a clássica tragédia de Eurípedes, Goethe escolheu Ifigênia como símbolo de sua condição quando decidiu conhecer Roma.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 08/mar/2015