O desejo de Goethe em Roma – 2

em roma

“Vivo aqui em Roma numa paz e clareza mental que a muito não sentia. Minha prática de buscar ver e ler todas as coisas como elas são tem me feito muito feliz e vivencio uma alegre serenidade. Alegro-me das abençoadas consequências que isso trará para toda minha vida”.

No livro/relato da Viagem à Itália, Roma é para Goethe um significante produtor de significações:  inscrita na lembrança infantil do escritor quando ouvia o relato do seu pai pelo território italiano. É também o encontro com sua formação na cultura grega e romana, reinventada pelos renascentistas. Acima de tudo, é a vivência de um renascimento existencial que mudou definitivamente seu estilo literário.

Em Roma viveu num estado psíquico que os religiosos chamam de epifania: verdadeira experiência mística, um exercício espiritual. O escritor encontrou, ao vivo e a cores, na pintura renascentista as telas verdadeiras das reproduções que ornamentavam seus aposentos em Weimar e a casa de seus pais. Revelação e transfiguração: êxtase místico que o intenso contato com as coisas da arte produzem durante sua estadia na cidade eterna e ao longo de toda a Viagem à Itália.

“No castelo da Villa Farnesina, vi a História da Psique, cujas reproduções coloridas alegram meu dormitório há tanto tempo; depois, em San Pietro in Montorio, a Transfiguração retratada por Rafael. Velhas conhecidas minhas, como amigos que fazemos por carta no exterior, e então, conhecemos pessoalmente. Vejo coisas magnificas por toda parte, obras das quais pouco se fala e de que inexistem gravuras e reproduções espalhadas pelo mundo. Dessas, levo algumas comigo, desenhadas por artistas jovens e bons”.

O comentário deixa transparecer a prática de reproduções de telas e sua extensão por toda a Europa no século 18. Os jovens artistas praticam o nobre oficio da pintura, reproduzindo as telas dos mestres do renascimento. Os viajantes aristocráticos colecionavam réplicas como souvenir, lembranças de viagem e, ao mesmo tempo, símbolo do bom gosto e manifestação de um estado de espírito culto. Ser culto numa sociedade aristocrática era cultivar os prazeres sensíveis: tato, olfato, visão, paladar e audição.

A pintura é objeto do prazer sensível relacionado à visão. É a arte da visão por excelência. O encontro com as telas originais incitava o escritor à pratica de ver as coisas como elas realmente são: “minha fidelidade ao propósito de ter os olhos sempre límpidos, meu completo despojamento para sentir e entregar-me às sensações tem me feito muito feliz e vivencio uma alegre serenidade”.

Esta fidelidade do escritor em manter os olhos sempre límpidos está bem contextualizada na mat(r)iz do pensamento moderno. Exemplo: a clássica definição de Galileu Galilei sobre a filosofia natural e por extensão, a prática da observação. “A filosofia está escrita neste imenso universo, livro que continuamente está aberto diante dos olhos e o qual não se pode entender sem que antes se aprenda sua linguagem e se conheçam os signos nos quais está escrito. Este livro está vazado em linguagem matemática e seus signos são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem as quais é impossível entender humanamente coisa alguma; sem tais signos, tem-se um inútil caminhar através de um escuro labirinto”.

Os signos da natureza são figuras geométricas. Este aspecto, o precursor da modernidade italiana soube recolher da pintura renascentista e da observação das estrelas. São as figuras geométricas, em proporção e volume, o encantamento de Goethe no tão desejado encontro com a arte figurativa do período. Arrisco dizer que a arte poética do escritor alemão, durante e após sua viagem à Itália, adquiriu os traços dos signos da natureza. Votarei a este ponto ao comentar o livro que ele escreveu no período da estadia em Roma. Advirto que leiam natureza como tradução do vocábulo grego phýsis: força originária, criadora de todos os seres.

O encontro marcado com seu desejo de viver Roma teve seu apogeu na Capela Sistina com Michelangelo e na basílica de São Pedro no dia da festa de Santa Cecília, a padroeira e protetora dos músicos. Na capela, sua admiração “repartiu-se entre o Juízo Final (pintado no altar mor) e as muitas pinturas do teto (narrando passagens do Pentateuco, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento). Nada pude fazer senão olhar e espantar-me. A segurança interior do mestre Michelangelo, em virilidade e grandeza, ultrapassa qualquer possibilidade de expressão”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 01/mar/2015