O desejo de Goethe em Roma – 1

“Amanhã ao anoitecer estarei em Roma. Ainda mal posso acreditar; e, cumprindo-se esse meu desejo, que mais poderei eu desejar? Nada além de atracar feliz em casa com meu barco de faisões e encontrar meus amigos saudáveis, alegres e benevolentes”.

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Eis o prenúncio e o retorno da metáfora do sonho do barco carregado de faisões, no momento de despedida do que Goethe recolheu em Veneza. Como afirmei no artigo anterior, os faisões representam o espírito nobre da antiguidade greco-romana. O inventor do romantismo alemão e da literatura moderna por extensão, encontrou na cultura renascentista italiana o tesouro brilhante: os faisões do sonho, a realização de um desejo.

No livro/relato da Viagem à Itália encontra-se a biografia da odisseia existencial de Goethe. Roma é um significante produtor de significações: inscrita na lembrança infantil do escritor ao ouvir o relato do amado pai pelo território italiano. É também o encontro com sua clássica formação na cultura grega e romana, reinventada pelos mestres do renascimento. É, acima de tudo, a possibilidade de experimentar um renascimento que mudará definitivamente seu estilo literário.

Ao adentrar no solo romano em 01/novembro/1786 escreveu duas cartas saudando os amigos de Weimar: “logrei decidir-me a fazer esta longa e solitária viagem em busca do centro para o qual me atraia uma necessidade irresistível. Sim, nos últimos anos este anseio transformou-se numa espécie de doença da qual apenas a visão disto tudo e minha presença aqui poderiam curar-me. O desejo de conhecer este país estava mais do que maduro; e realizado este desejo, a perspectiva de rever os amigos e a pátria voltará. Levarei comigo tantos tesouros não para proveito próprio, mas para que sirvam de guia e estímulo para mim e para outros também, e pela vida toda”.

Noutra carta, no mesmo dia: “cheguei afinal a esta capital do mundo! Agora estou aqui, calmo, tranquilizado para toda a vida. Sim, pois pode-se dizer que uma vida tem início quando se vê com os próprios olhos aquilo que, em parte, se conhece muito bem”. Reconheceu ainda: “todos os sonhos de minha juventude, vejo-os agora ganhar vida. Nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu, mas os velhos tornaram-se tão definitivos, tão vivos, tão coerentes, que poderiam passar por novos. E que efeito curativo tem sobre minha moral viver em meio a um povo tão sensual: os italianos estão demasiado distantes de nós, e o contato com eles é, para um estrangeiro, árduo e custoso”.

A estadia em Roma iniciou no dia de Todos os Santos. Na condição de estrangeiro alemão protestante, Goethe não poderia ter chegado em melhor data. Pensou consigo: “se tanto se reverencia cada santo em particular, que honras não caberão a todos eles reunidos? Mas me iludi. A Igreja romana não promove uma festa geral e conspícua, cabendo a cada ordem religiosa celebrar por si própria a memória de seu fundador”.

A frustração da tão esperada festa recebeu sua recompensa no dia de Finados. Acompanhado de um pintor conterrâneo que morava em Roma foi à celebração da memória dos mortos realizada na capela particular do Papa, na época, Pio 6º. “A sensação de se estar sob um mesmo teto com o representante de Cristo é emocionante. O Santo Padre é uma das figuras mais belas e dignas que já vi. Fui tomado pelo estranho desejo de que ele abrisse a boca e nos arrebatasse a todos. No entanto não foi isso o que aconteceu. Ele mais parecia um padre comum e o pecado original protestante pôs-se a agitar-se em mim, e não consegui encontrar agrado no conhecido e costumeiro sacrifício da missa”.

Disperso, afastou-se da celebração e foi ocupar-se em contemplar as paisagens pintadas pelos mestres do renascimento que ornamentavam a capela e o palácio papal. O encontro com a tela Madona de São Nicolau de Frari pintada por Ticiano no século 16 causou-lhe forte comoção: “A tela ofusca tudo quanto já vi dele. Não sei dizer se é minha percepção que está mais treinada ou se a pintura é realmente a mais magnífica de todas”. Ambas são verdadeiras. A estadia em Veneza apurou a percepção estética do escritor e a tela de Ticiano é tão magnífica em seu tema e na perspectiva criada que só podia decorar a capela particular do Papa.

Roma representou o prato principal no grande banquete que foi a viagem à Itália. Os dez primeiros dias em Roma permitiu-lhe uma confissão: “Vivo aqui numa paz e clareza mental que a muito não sentia. Minha prática de buscar ver e ler todas as coisas como elas são, minha fidelidade ao propósito de ter os olhos sempre límpidos, meu completo despojamento tem me feito muito feliz e vivencio uma alegre serenidade. Alegro-me das abençoadas consequências que isso trará para toda minha vida”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 22/fev/2015