Continuando o trajeto desta série, apresentando a carteira de identidade de livros de filosofia e literatura, hoje colhemos um conto do escritor franco-argelino Albert Camus. Incluído no livro O Exílio e o Reino, o conto A Pedra que Cresce foi publicado em 1957. Na versão original, o conto intitulava-se Uma Macumba no Brasil. No escrito, o narrador conta a viagem e estadia de um engenheiro francês à pequena cidade do Vale do Ribeira, no interior sul de São Paulo, para preparar a construção de uma represa.
Iguape — em tupi, significa enseada do rio — foi colonizada no final do século 16 e designada Freguesia de Nossa Senhora das Neves da Vila de Iguape. Em 1848, elevada a condição de cidade do Bom Jesus de Iguape, a padroeira inicial cedeu lugar a um culto e devoção popular à imagem do Bom Jesus encontrada por pescadores e alojada em uma gruta onde se acredita na existência de uma pedra que cresce. Todo ano, peregrinos de várias regiões visitam Iguape para pagar promessas, pedir graças ao Bom Jesus e levar uma lasca da pedra para casa.
O conto de Camus é a transcrição literária de sua viagem e estadia na festa do Bom Jesus de Iguape em companhia do escritor Oswald de Andrade. No livro Diário de Viagem, encontramos um minucioso relato diário das impressões do escritor quando foi designado pelo governo francês para uma viagem de visita ao Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, em 1949. Aceitou o trabalho tal como Sísifo condenado a empurrar sua pedra ao topo da montanha. O diário é o registro poético existencialista mais belo que conheço. Nele, o estado psíquico de melancolia e torpor do escritor aparece de forma cristalina.
Ao despertar da viagem surreal até Iguape em 6 de agosto, anotou: “Despertar muito cedo. Infelizmente, não há água neste hospital. Faço a barba com água mineral e lavo-me um pouco. Enfim, saímos por Iguape. No pequeno jardim da Fonte, misterioso e suave, com cachos de flores entre bananeiras, reencontro um pouco de isolamento e tranquilidade. Mestiços, mulatos e os primeiros gaúchos que vejo, diante da entrada de uma gruta, esperam pacientemente conseguir pedaços de pedra que cresce. Iguape, na verdade, é cidade do Bom Jesus, cuja efígie foi encontrada sobre as ondas. Desde então, cresce ali incansavelmente uma pedra, que é cortada em lascas com o poder milagroso.”
Continua: “Iguape tem ares de estampa colonial. Respira-se uma melancolia muito particular, a melancolia dos fins do mundo. Viemos para a procissão. Ao longo do dia, a multidão cresce. Alguns dos romeiros estão na estrada há cinco dias, nos caminhos esburacados do interior”. A descrição dos penitentes e do ritual da cerimônia religiosa é digna de pintura impressionista.
Ao término da procissão, Camus foi jantar com as autoridades locais e depois fez um passeio solitário pela praça da matriz onde presenciou a seguinte cena: “os gauchinos cantam e todo mundo faz uma roda. Os fogos de artifício continuam e uma criança perde um dedo. Fica chorando, e ao levarem-na, grita: ‘Por que o Bom Jesus fez isto comigo?’”. Entre parênteses, escreveu como em um grito: “traduzem para mim esse grito da alma”.
Na cerimônia de entrega do Nobel de Literatura em 1957, o anfitrião destacou: “Encontra-se em Camus uma atitude espiritual visível desde seus primeiros escritos, nascida das contradições irredutíveis que nele existem entre o sentimento da vida terrestre e da tomada de consciência da realidade da morte”. Foi com essa atitude espiritual que o escritor contou sua estadia em Iguape e demais capitais do Brasil. O conto A Pedra que Cresce contem o relato desta viagem.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 22/set/2013