No Jardim de Monet

Giverny é um vilarejo às margens do rio Sena na região da Alta-Normandia. Local escolhido por Claude Monet para viver o crepúsculo de sua existência. Com o reconhecimento público de suas obras, o brilhante pintor expoente do movimento impressionista, adquiriu um pedaço de terra para inventar o seu jardim e morada eterna. A casa e o jardim eternizaram o mestre das cores. No jardim da pequena igreja do vilarejo, numa sepultura de terra com flores multicoloridas repousam seus restos mortais.

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Desde que conheci as reproduções das telas que Monet pintou de
seu jardim, acalentava o desejo de conhece-lo pessoalmente. O desejo se fez ato num belo dia de sol de verão. Visitar o jardim de Monet é uma experiência estética de profundo deleite, uma festa dos sentidos. O jardim é um encontro crepuscular com a vida do pintor e seu olhar de despedida, um adeus. Os grandes painéis decorativos do Museu de Orangerie em Paris são sublimes exemplares deste tempo crepuscular. As ninfeias de seu jardim foram capturadas em variações cromáticas com pinceladas ágeis e precisas.

Da estação Saint-Lazare (Monet fez um contundente retrato desta estação) em Paris, um trem nos conduz até medieval cidade de Vermont. De ônibus, táxi ou bicicleta o belo trecho até Giverny é percorrido. Um almoço na pensão em que Monet se hospedava enquanto construía seu jardim é uma boa saudação. Após o repasto, adentre ao sagrado recinto e procure uma sombra à margem do lago, construído para abrigar as exuberantes ninfeias.

O passeio se encerra com a visita à casa em que Monet passou seus últimos anos: a cozinha com seus utensílios é um convite a imaginar os animados encontros com os amigos: a festa dos impressionistas. Monet era habilidoso chef e apreciava os prazeres da mesa. Do quarto principal, a mais bela vista do jardim. As paredes são decoradas com telas de outros pintores, amigos e admirados, compondo a coleção mais refinada do período. Parte dela foi doada pelo filho herdeiro e pertencem ao Museu Marmottan de Paris.

Cada detalhe do jardim foi carinhosamente desejado e rigorosamente executado. Monet importou plantas de vários continentes e até flores nativas da Amazônia brasileira. O jardim é, em si mesmo, uma obra de arte. Matriz de dezenas telas que o pintor reproduziu em variações cromáticas – proporcionais ao avanço da catarata que aos poucos subtraia sua visão.

Monet decidiu o lugar, seu jardim, para encontrar-se com a morte: um encontro marcado! Desejou morrer entre flores à margem do lago de ninfeias, sua grande paixão. A casa e o jardim simbolizam o ato heroico e estoico que lhe conferiram a imortalidade. Seu trabalho como pintor e a construção de seu jardim personificam as chamadas “coisas da arte” na bela definição do poeta Rainer Maria Rilke: “As coisas da arte são sempre resultado de ter estado a perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até um ponto que ninguém consegue ultrapassar. Quanto mais se avança, tanto mais própria, tanto mais pessoal, tanto mais singular torna-se uma vivência, e a coisa da arte é enfim a expressão necessária, irreprimível e a mais definitiva possível desta singularidade”.

No início do século 20, Arsène Alexandre, crítico de arte do jornal Le Figaro, fez a seguinte descrição do jardim: “Giverny vislumbra-se ao fim da estrada; a vila é bonita mas sem grande caráter; semicampo, semicidade. Mas, subitamente, ao atingir a saída do burgo e ao continuar a estrada de Vernon, um espetáculo novo, extraordinário e inesperado como toda surpresa, saúda-nos. Apresenta-nos todas as cores de uma paleta, todas as notas de uma fanfarra: é o jardim de Monet”. A variação rítmica de sons tomada como metáfora para variação da luz é uma bela imagem para designar as centenas de telas criadas pelo impressionista.

Claude Monet foi um destes artistas que sobreviveram pela obstinada paixão pela arte. Filho de um próspero comerciante, desde criança dedicou-se a desenhar caricaturas, passando do lápis ao pincel graças a insistência de Eugène Boudin, seu primeiro mestre nas telas. Ao chegar em Paris, conheceu Camille Pissarro e juntos saíam em busca de cenários urbanos da capital francesa. Os anos de serviço militar prestado na Argélia foram decisivos para a carreira do pintor. Numa carta afirmou: “as impressões de luz e cor que lá recebi só se organizaram mais tarde; continham o germe de minhas futuras pesquisas com a cor”.

A série ninfeias, retratam a pesquisa incansável de Monet com a magia das cores. Suas telas são explosões luminosas. Cores fortes e primárias predominam em pinceladas ligeiras e precisas. Parece-me que Monet detinha os segredos do esgrimista: usou o pincel como uma espada em sua luta para capturar as variações solares sobre os objetos do mundo. Seu jardim em Giverny foi o palco onde a natureza despudoradamente exibia suas cores aos olhos do artista.

Sobre as Ninfeias, Maurice Sérullaz comentou: “Miragem, fantasia, fantasmagoria, cintilações, realidade e abstração, verdade e cenário, encanto das cores e sutilezas infinitas dos cambiantes, eis o que são os nenúfares. À semelhança do músico que compõe variações sobre o mesmo tom, Monet modula sem repetições até ao infinito”. A série dos Nenúfares (designação comum a diversas plantas da família das ninfeáceas) representam a síntese de uma vida, um mundo de arte. As variações de cores iluminam e arrebatam o olhar e estimula a imaginação.

As Ninfeias podem ser comparadas a “opus incertum”, tipo de construção em blocos de pedra irregulares, mas que se ajustam entre si. As telas que compõem a série são construções de estilo arquitetônico. Linhas se entrecruzam numa sinfonia de cores, ajustando na horizontalidade da superfície da água, folhas, ervas, flores; na verticalidade, os reflexos dos salgueiros e roseirais. Como esgrimista, Monet luta com a luz solar capturando suas variações. Outro exemplo célebre é a série de 30 telas da Catedral de Ruão de 1894, onde o artista procura fixar os efeitos fugidios da luz, as horas entre o momento onde a bruma matinal se levanta e o momento onde se extinguem os últimos raios de sol.

A sensualidade das Ninfeias foi capturada pelo filósofo-poeta Gaston Bachelard: “a cada aurora, após o bom sono de uma noite de verão, a flor da ninfeia, imensa sensitiva das águas, renasce com a luz, flor sempre jovem, filha imaculada da água e do sol. Tanta juventude reencontrada, tão fiel submissão ao ritmo do dia e da noite, tal pontualidade em dizer o instante da aurora, eis que faz a ninfeia a própria flor do impressionismo. A ninfeia é um instante do mundo. É uma manhã dos olhos. É a surpreendente flor de uma alvorada de verão”. As flores aquáticas ofereciam seu esplendor matinal aos olhos do pintor, cansados pelo tempo. Os últimos anos da vida de Monet foram dedicados à captura da beleza de suas flores através da luminosidade que as cores expressam.

fonte: Revista Arraso / Festas; Ano 6; nº 47; 2º semestre/2014; publicação do Jornal de Piracicaba; ilustração: Maria Luziano