Em nosso Catálogo das Paixões, série de ensaios onde definimos o ser humano como um ser passional, os afetos e emoções são as paixões da alma. Em nossa lista, vamos inserir o desejo como o substrato das paixões. O que nos faz humanos é a singular capacidade de amar, odiar, desejar, vivenciar o prazer e o desprazer, construir laços de amizade, ter esperança, temor, coragem, alegria, tristeza e, acima de tudo, lutar para ser feliz, praticar a justiça e equidade nas relações com nossos semelhantes.
Na tradição filosófica ocidental, o desejo sempre esteve no centro do pensamento reflexivo, nos códigos morais e nas teorias políticas. Platão inaugurou um catálogo ao estabelecer a distinção entre realidade sensível e inteligível, instaurando um corte radical na cultura ocidental ao separar (substancialmente) o corpo e a alma.
A alma (psyhké, sopro de vida, sede dos desejos, paixões, sentimentos e pensamentos) possui uma natureza intermediária entre o divino (imortal) e a realidade sensível. Destinada ao conhecimento verdadeiro, mas acorrentada ao corpo, pode cair no erro, nas ilusões e enganos. De Platão, herdamos a imagem do corpo como cárcere da alma. Quando governada pelas paixões, a alma é desviada de sua finalidade: comprazer em quietude e imperturbabilidade.
Nos diálogos sobre a imortalidade da alma, Platão destacou sua natureza intermediária entre o sensível corporal e o inteligível espiritual. Por ser imortal, a alma é o elemento divino presente em cada ser. Sua individualidade é constituída pela forma com que se relaciona com a realidade corporal e, em especial, o modo como governa (ou é governada) pelas paixões e desejos.
Há três funções básicas da alma. Duas são privadas de razão e a outra é a própria razão (inteligível). A função apetitiva deseja obter prazer a qualquer custo e se localiza no baixo-ventre, entre o diafragma e o umbigo; sua finalidade é buscar os objetos que possam saciar suas necessidades básicas (comida, bebida e sexo). A função colérica ou irascível, situada acima do diafragma na cavidade do peito, se irrita ou se enraivece contra tudo o que possa ameaçar a segurança do corpo e tudo o que lhe possa causar dor e sofrimento (embora seja protetora do corpo, essa parte também é mortal e irracional). A função racional, situada na cabeça (face e cérebro) é a divina faculdade de representar as sensações por ideias e tem como finalidade obter o conhecimento verdadeiro e o governo das duas anteriores. Esta última é o princípio da autonomia (guiar-se por sua própria lei).
As duas primeiras (apetitiva e colérica) são a sede das paixões, carente de razão e mortal; a terceira, ativa, racional e imortal, deve administrar e controlar as paixões. Ao construir um modelo tripartite da alma, Platão definiu a natureza humana marcada por um conflito irredutível. As paixões, representantes do desejo e da cólera, fazem com que os apetites e impulsos agressivos obscureçam a capacidade de raciocinar. Quando as duas primeiras funções da alma se sobrepõem em relação à terceira, os indivíduos são lançados ao vício e a ignorância. Dominado pelas paixões se degeneram na busca de prazeres transitórios e efêmeros. Ao estabelecer desejo e paixão como sinônimos vinculando-os à parte privada de razão, Platão atribuiu aos desejos à causa da inquietude e instabilidade na parte racional da alma.
Qual a tarefa moral da parte racional da alma? Dominar as outras duas e harmonizá-las com os princípios ditados pela razão. Os desejos e as paixões devem estar sob tutela da razão. Platão definiu o desejo como um cego incapaz de escolher objetos e a razão o guia que indica os caminhos da virtude e da sabedoria. A alma temperante e moderada é capaz de fazer escolhas livres dos impulsos passionais.
A presença hegemônica da filosofia platônica durante o período medieval, em especial na teologia cristã, foi contestada pelo advento da filosofia moderna do século 17 com o pensamento empirista da escola de Oxford na Inglaterra. Iniciado com Thomas Hobbes, o empirismo inglês estabeleceu um corte, uma descontinuidade na tradição idealista oriunda das leituras realizadas de Platão ao longo dos séculos.
Hobbes foi um dos mais inventivos leitores de Aristóteles e soube capturar os elementos fundamentais para romper com a concepção platônica da alma. Ao inscrever a natureza humana como soma de faculdades que integram a nutrição, o movimento, a geração, os sentidos, a imaginação e a razão, o filósofo inglês deu ao desejo o estatuto de um conatus, ou seja, esforço primário irredutível a qualquer outra instância passional.
O conatus é original e primordialmente desejo de conservação de si, de autoconservação. O desejo é o esforço de afirmação da existência: é o movimento de apropriação do que é útil para a conservação e também a prefiguração da fuga, do afastamento frente a tudo que possa ameaçar essa conservação. Em suma, o desejo é o esforço primordial pela afirmação da vida e o temor absoluto da morte. É nossa inclinação natural para buscar o prazer e fugir da dor.
Há dois tipos de desejo: os inatos (fome, sede, sexo) e os adquiridos (os que procedem da experiência e se referem a objetos particulares). A precondição de ambos é a ausência do objeto, pois é o impulso determinante que nos conduz a buscar os objetos que proporcionam prazer e evitar, pelo afastamento, o que nos causa desprazer ou dor. Neste sentido, o desejo aumenta sua potência conforme aumenta as vivencias.
A outro pensador inglês coube a tarefa de representar o desejo como irremediavelmente móvel, instável, transitivo, irrequieto e inquieto. No Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690) John Locke demonstrou que a razão é o resultado precário das experiências sensórias que o indivíduo adquiriu ao longo de sua existência. Toda ação é determinada pela experiência de prazer e de dor, elementos primordiais sobre os quais giram as paixões. “As coisas são boas ou más apenas em referência ao prazer e a dor. Chamamos de bem àquilo que é apto a causar ou aumentar o prazer, ou diminuir a dor em nós. E ao contrário, chamamos de mal àquilo que é apto a produzir ou aumentar qualquer dor, ou diminuir o prazer em nós”.
Locke concebeu as paixões sob dois aspectos: o estado de satisfação (prazer) e de insatisfação (dor/desprazer). “Nós amamos, desejamos, nos alegramos e temos esperança apenas em relação ao prazer; ao contrário, é apenas em vista da dor que nós detestamos, tememos nos afligimos. Todas essas paixões são produzidas pelas coisas, apenas enquanto elas parecem ser as causas do prazer e da dor, ou parecem ter, de alguma maneira, o prazer e a dor ligados a elas”.
Como não há um estado permanente e imutável que possa abrigar a inquietude da alma, o desejo é o movimento contínuo que nos conduz a busca do prazer e a evitar a dor. Neste sentido, a inquietude do desejo é a sublime condição humana. Instável, provisório e imprevisível cada objeto é apenas um ponto de ancoragem e passagem para o movimento de fruição em direção a outro objeto com o qual as vivencias de prazer podem ser perseguidas e a dor evitada.
Fonte: Revista ARRASO / Estilo Primavera-Verão– Ano 6, nº 44, 2014 Publicação do Jornal de Piracicaba – ilustração: Maria Luziano