No prefácio do livro As Palavras e as Coisas, publicado em 1966, Michel Foucault demonstrou que sua investigação arqueológica demarcou duas grandes descontinuidades na “epistémê” (saber) da cultura ocidental: a primeira inaugura a Idade Clássica (por volta do século 17) e, a outra, no início do século 19, delineando o limiar da modernidade. É em torno da segunda que emergiram todas as quimeras do humanismo naturalista e romântico: solo determinante para o surgimento das ciências humanas.
Constatou que “é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber e que desaparecerá desde que houver encontrado uma nova forma. Nesse limiar apareceu pela primeira vez esta estranha figura do saber que se chama homem e que abriu espaço próprio às ciências humanas”. Na última página do livro, encerrado de forma retumbante, Foucault proclamou tal como um Zaratustra: “O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez, o fim próximo”.
O resultado da pesquisa arqueológica do jovem filósofo não passou despercebido do psicanalista fundador da Escola Freudiana de Paris. Numa aula do Seminário 15 (O Ato Psicanalítico), Jacques Lacan convidou seus ouvintes a penetrar no mistério das relações entre o universal e o particular: o “Todo” e o “Um”. “Todo homem é… Um homem não é…” E, para tanto, convocou seus ouvintes a lerem o livro recém publicado As Palavras e as Coisas.
Neste ponto da exposição, Lacan afirmou: “Pois, afinal, nós podemos muito bem, desde o princípio e sem nos debater em vão, ouso dizer, como nosso amigo Michel Foucault, dando a absolvição (cerimônia fúnebre que precede o ofício dos mortos) a um humanismo já há tanto tempo esgotado. O sujeito não é o homem”. O homem é uma representação do saber historicamente constituída. Em cada tempo histórico encontramos uma datada representação do que é o homem. Todo humanismo é um construção linguística em torno do que é possível enunciar de cada espécie humana em particular. Humano é um atributo universal para o sujeito advir em sua singularidade.
“O sujeito não é o homem”: um aforismo, um enunciado lógico-político. Ao inscrever o sujeito pelo negativo, Lacan demonstrou que o universal impõe um apagamento do sujeito em sua particularidade. Num exercício de lógica aristotélica, podemos dizer que o sujeito atualiza o homem (atributo de todo humanismo). O sujeito advém no espaço intervalar entre as palavras e as coisas. Como bem disse Fernando Pessoa: “sou o intervalo entre o que desejo e o que o desejo dos outros fizeram de mim”.
Lacan e Foucault são contemporâneos alternados: ambos demarcaram a questão do sujeito em sua relação com a verdade na história da cultura contemporânea. Interrogar a gênese do sujeito foi uma excelente estratégia de resistência política às diferentes manifestações do fundamentalismo moral (sempre universalista). Ambos reinscreveram a ética do cuidado de si como prática de liberdade e de libertação da tutelagem. O sujeito ético é quem faz do ato de cuidar de si, cultivar a si, uma forma extensiva ao cuidado dos outros.
Lacan encontrou na figura de Antígona (a filha fiel companheira de Édipo, clássica tragédia de Sófocles) o protótipo da ética da psicanálise. Foucault, por sua vez, encontrou na antiguidade grega e romana os arquivos (livros destinados ao cultivo de si) para fazer emergir a ética do cuidado de si como principio de singularização e diferenciação. Ambos renovando, de um modo ou de outro, a aposta num humanismo renascentista em pleno século 20. Só alguém apaixonado pelo ser humano poderia engajar a própria vida para nos ensinar que a beleza está na diferença. O sujeito é a afirmação da diferença. Ser humano, o homem, é um universal que nos iguala. O que nos diferencia é o modo de subjetivação deste universal que somos: seres humanos.
O renascimento do humanismo no século 21 depende do clássico pressuposto: os humanos são seres de linguagem e; isto implica sustentar a diferença entre palavra e coisa. Michel de Montaigne, o grande expoente do humanismo renascentista do século 16, definiu brilhantemente este pressuposto num de seus Ensaios (Da Glória): “Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a palavra que marca e significa a coisa: não faz parte dela, a ela não se incorpora; é um acessório que se acresce, por fora.”
Desejo um novo ano, sempre novo de possibilidades afirmativas de desejo. Que em 2014, o valor das palavras possa ser restituído para demonstrar afetos e compromissos presenciais. E, sobretudo, que o cultivo de si seja uma tarefa a mais na lista de mudanças para o Ano Novo.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 29/dez/2013
ilustração: Erasmo