Em 1840, o poeta e dramaturgo José Zorrilla y Moral se hospedou na Plaza de los Venerables em Sevilha para escrever sua clássica versão para o mítico Don Juan Tenório. Hoje a Hosteria del Laurel exibe o título de lugar em que o mítico sedutor se hospedou. O belo edifício abriga restaurante e hotel servindo de cenário para Zorrilla contabilizar as conquistas do burlador de Sevilha. No aspecto dramático, esta versão implanta o romantismo do norte da Europa em solo espanhol e, sua interpretação do mito, adquiriu um juízo moral predominante em grande parte das versões subseqüentes. Nela, o burlador refaz sua trajetória existencial num relato mnemônico: com certa nostalgia e em busca de um tempo perdido, lembranças de aventuras e conquistas. O título da peça teatral Don Juan Tenório foi extraído de outra peça, El Burlador de Sevilha de autoria atribuída a Tirso de Molina, publicada em 1630.
Em artigo da série, destaquei o predicado atribuído a Don Juan Tenório: burlador. Além do anticaráter moral como trapaceiro libertino, burlador é também o nome de um tipo de vaso (copo) de barro com orifício oculto que molha a quem o leva à boca para beber. Bela metáfora para designar Don Juan. A primeira cena da peça O Burlador de Sevilha demonstra em ato, o predicado: Don Juan se faz passar pelo amante da duquesa Isabela. Na calada da noite, adentra no quarto e se aninha na cama da duquesa. “Quem é você homem?”, indaga sussurrando a duquesa. “Quem sou? Sou um homem sem nome”, responde o burlador.
Um homem sem nome, sem identidade no ato de seduzir. Ele pode ter qualquer nome: até como embaixador da Espanha se apresentava. Poder ser é a potência de Don Juan. Seu ser é puro ato: conquistar, seduzir, burlar. O que lhe importa é a vitória: uma mulher a mais é uma conquista a mais; esta é a equivalência. Ama a todas em cada uma. Nos lugares por onde passava deixava um rastro de desmoralização: em cada mulher devorou-lhe a virtude moral; desnudou o valor sedimento das relações sociais no Antigo Regime: a honra – o bem mais precioso numa sociedade aristocrática. No célebre diálogo entre Don Juan e Catalinón (servo fiel, contabilizador das conquistas) encontramos o ponto de ancoragem para outras versões e reinterpretações ao longo da história da literatura moderna ocidental. Catalinón indagou se Don Juan pretendia seduzir Tisbea (jovem filha de pescador que o socorreu na praia após um naufrágio em rota de fuga). “Se o burlar é meu hábito muito antigo, porque me perguntas, sabendo minha condição?” Eis a verdadeira identidade deste personagem mítico, seu hábito, a sua maneira usual de ser. Qual a condição existencial de Don Juan? Ser burlador. Esta definição percorre o texto da peça, de ponta a ponta. A resposta do servo é brilhante: “Eu sei que és uma lagosta de mulheres. Pagará com a morte este seu modo de fingir e enganar as mulheres”, vaticinou. “Qué largo me lo fiáis! Catalinón com razon te llamam”, devolveu com ironia Don Juan.
Esta última frase pode ser traduzida como a chave de sentido para o desfecho da peça: é repetida como um significante que constitui o psiquismo do personagem. “Como é longo o prazo que me dá para saudar esta dívida” é a resposta irônica de Don Juan à sentença de morte anunciada como pagamento da dívida moral: ser burlador. Na seqüência da frase, o jogo metonímico com o nome do servo: “Catalinón com razão te chamam”. Catalinón deriva de “catalina”, em português, catarina, pequena roda do relógio, cujos dentes são encontrados pelas palhetas do volante. Catalinón é o representante do tempo contabilizado pelas conquistas: mais uma. A pequena roda do relógio marcando o tempo da sentença.
Na cena seguinte, sai Catalinón e entra Tisbea, a próxima vítima do galante sedutor. O diálogo é uma preciosidade ao tipificar, em ato, a arte da sedução. O diálogo é sequência do primeiro encontro quando, fingindo o desmaio de um afogado, Don Juan abre os olhos e se vê nos braços da jovem Tisbea. Já enamorada, ela retorna e languidamente diz: “Um pouco que fiquei sem você estou com um estranhamento, um vazio”. “Se me amarás minha alma favorecerá”, responde o galante. “Já sou inteiramente sua. Já estou castigada por seu amor”. No instante, Don Juan promete desposar Tisbea. Ela constata a diferença de classe entre eles: como um nobre poderá unir-se em matrimônio com jovem filha de pescador?
A resposta de Don Juan dá o tom da empreitada: “O amor é rei que iguala com justa lei a seda com a tosca lã”. Pronto: mais uma conquista. Quando Tisbea se dá conta que o prometido casamento era só mais uma trapaça do burlador, grita, pede clemência e justiça para sua alma (e corpo) desonrada. “Enganou-me o cavalheiro profanando minha honestidade e minha cama. Vou à presença do rei pedir vingança”. Dali em diante, mais uma fuga para outra cidade, outro País, outras terras, outros lugares: novas conquistas.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,30/mar/2014
ilustração: erasmo