Na Antiguidade grega e romana havia o preceito ético do cultivo dos prazeres sensíveis ligados a um conjunto de técnicas que auxiliavam no exercício de formação do caráter e da virtude. Viver era concebido como uma arte, exigindo de cada indivíduo o esforço contínuo em transformar cada gesto do cotidiano em modo de expressão da beleza, bem estar e convivência pacífica consigo mesmo e com os outros. O cultivo da arte de viver recebeu o nome de aphrodisia, o uso dos prazeres.
Aphrodisia designava atos, gestos, contatos e comportamentos que proporcionavam certa forma de prazer que estavam para além do ato sexual e incluíam os prazeres relacionados a cada um dos órgãos sensoriais: tato, olfato, paladar, audição e, visão. Para cada um dos órgãos dos sentidos, uma forma de prazer correspondente. O termo deriva do culto à deusa Afrodite (Vênus, para os latinos) representante de tudo o que se refere ao amor, à beleza e aos prazeres. Prestar culto à Afrodite era uma maneira de engajar-se num trabalho artístico de fazer da vida (singular e coletivamente) uma obra de arte.
Cuidar de si, ocupar-se de si, não correspondia a esta perspectiva moralizante de individualismo que assola nossos dias. Ao contrário, o exercício ético do cuidado de si era precondição para qualquer forma de cuidado com os outros. Cuidar de si exigia rigor, esforço, trabalho constante e ininterrupto. Assim, cultivar a beleza e o amor era o supremo ato de usar os prazeres com temperança e moderação.
No Fédon, diálogo escrito por Platão para narrar o tempo que antecede a sentença de morte a Socrátes, encontra-se claramente sua posição sobre o prazer e a dor: para adquirir a sabedoria, as sensações corporais são o verdadeiro impedimento e é preciso se libertar do corpo. Esta abnegação do corpo deixou marcas indeléveis na história da cultura ocidental. Como o prazer e dor pertencem à esfera das sensações corporais, afastar-se delas é pré-condição para adquirir a libertação da alma e, por conseguinte um estado de ataraxia, ausência de perturbações.
Aristóteles situa-se no contrafluxo do idealismo platônico e legitima as sensações corporais como princípio do conhecimento, atribuindo ao prazer um estatuto fundamental para a filosofia moderna e, em especial, aos pensadores que se alinham ao sensualismo no século 18. No livro 10, encerrando a Ética à Nicômaco, o prazer é definido como a forma mais completa em todo e qualquer movimento. Admitindo que o desejo seja movimento, o prazer é sua finalidade. O desprazer ou dor é a negação, o impedimento, a barreira para a realização do desejo.
Indaga o filósofo: “Como explicar, então, que ninguém esteja sempre contente e feliz com realização do desejo? Será porque o desejo não tem um objeto específico? A verdade é que todos os seres humanos são incapazes de uma atividade contínua, e essa é a razão de não ser contínuo também o prazer. Certas coisas nos deleitam quando são novas, porém menos quando deixam de sê-lo”. O prazer complementa a atividade e cada atividade tem o seu prazer que lhe é próprio. “Assim, pois, como diferem entre si as atividades, também diferem os prazeres correspondentes”.
O uso dos prazeres como exercício estético do cuidado de si foi amplamente estudado pelo filósofo francês Michel Foucault, no livro História da Sexualidade (volumes 2 e 3) publicado em 1984. Em entrevista afirmou que, ao contrário do que dizem a maioria dos historiadores da antiguidade, os gregos não se interessavam muito por sexo. Na escala de valores, os prazeres relacionados à alimentação e à bebida eram superiores aos prazeres sexuais. A questão da dietética (o que e o quanto comer e beber) era um problema ético fundamental na estética de si, no cuidado de si.
“Comparei o que os gregos e os romanos escreveram sobre a alimentação com o que diziam sobre o sexo e cheguei à paradoxal conclusão que nos termos da aphrodisia, a dietética se sobrepunha ao uso do prazer sexual. Acho que é realmente muito interessante ver o movimento histórico de privilegiar a alimentação, que era superestimada na Grécia, até o interesse no sexo. No inicio da era cristã, a alimentação era muito mais importante do que o sexo. Por exemplo, nas regras para os monges, o problema era sempre o alimento (daí a prática do jejum como purificação e penitência). Isso perdurou durante toda a Idade Média. Foi somente no século 17 que o prazer sexual alcançou o status de problema moral por excelência. O sexo é uma invenção moderna”.
Não é sem motivo que o tema da temperança, como critério para qualificar quem é ou não virtuoso ocupava o centro de todos os preceitos morais. O sujeito temperante se caracterizava, sobretudo, por uma forma ativa de domínio de si permitindo resistir ou lutar para conquistar sua autonomia no terreno dos desejos e prazeres. A questão da dietética está ligada à relação de cada sujeito com seu próprio corpo. Cuidar de si requer uma dietética dos prazeres no sentido mais amplo do termo: exercício de autonomia frente aos apelos do consumo desenfreado.
Quem pratica a phronesis, termo que designa temperança, moderação e prudência no uso dos prazeres, cultivava o bom senso, exercitando o autodomínio. Neste aspecto, não se trata de fazer o que é permitido ou deixar de fazer o que é proibido. Não havia normalização do comportamento moral na ética do cuidado de si. No domínio da ética é o sujeito que está em questão. Compete a cada um determinar o que é bom ou ruim a partir de suas próprias experiências corporais, vivenciais. Assim, em última instância, é sempre a relação com o próprio corpo o critério dos juízos de valores no que tange ao uso dos prazeres.
“A dietética tem como objetivo evitar os excessos, a intemperança. A dieta ética não por finalidade conduzir a vida o mais longe possível no tempo, nem no mais alto possível no desempenho vital, mas sim torná-la útil e feliz nos limites que lhe foram fixados pela natureza. Ela também não deve propor-se a fixar de uma vez por todas as condições de uma existência. A utilidade do regime está, precisamente, na possibilidade que dá aos indivíduos de poderem enfrentar situações diferentes, armar-se para a multiplicidade das circunstâncias possíveis. Por fim, conclui Foucault, a dietética é uma arte estratégica que permitir responder, de uma forma que seja razoável e, portanto útil, às contingências que a vida está submetida”.
O regime alimentar (dietética), a boa comida e bebida, era considerado pelos gregos um exercício ético estético de fazer da própria existência uma obra de arte. O regime é toda uma arte do bem viver, a prática do cuidado de si.
Revista Arraso / Boa Comida 2014/2015; Ano 6; nº 45; publicação do Jornal de Piracicaba