Category Archives: Jornais

Tristeza e Depressão

“A tristeza é senhora; desde que o samba é samba é assim” cantou o poeta. Todos querem a alegria e, de preferência, o tempo todo. Como todos os afetos, a alegria não existe sem a tristeza; o amor sem o ódio; a coragem sem a covardia. Para ser alegre é preciso ser triste; caso contrário, não saberíamos distinguir um estado psíquico de outro.

Em dezembro de 2009, David Goldberg, psiquiatra do King’s College de Londres, esteve no Brasil como convidado do Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Em sua conferência, interrogou seriamente o Manual de Diagnósticos e Estatísticas (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria e o lugar do sofrimento psíquico na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde: “é urgente delimitar o que define a doença mental, e a melhor maneira de fazer isso é rotular apenas coisas para as quais haja evidência de que os tratamentos atuais com psicotrópicos sejam melhores do que placebo”.

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Neurose Histérica

Numa cena cotidiana, ouvi um garotinho dizer à mãe: ‘deixa de ser neurótica, não precisa se preocupar tanto’. Houve um tempo em que os sofrimentos psíquicos eram diagnósticos na categoria psicose e neurose. Atualmente há uma miríade de diagnósticos e consequentes remédios psicoativos.

O designativo neurótico passou adjetivar estados psíquicos e comportamentais no discurso popular e desapareceu do Manual de Diagnóstico da Associação de Psiquiatria Internacional. Diferentes autores do discurso psicanalítico interrogaram o apagamento da neurose como categoria diagnóstica no atual Manual, conhecido como DSM-5.

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Freud & Jung e a invenção da psicanálise

A história de Sigmund Freud e seus amigos/discípulos é um capítulo relevante para apreender a emergência histórica da prática clínica inaugurada pelo neurologista vienense inventor da psicanálise. A capacidade retórica de Freud surpreende e seus livros “A Interpretação dos Sonhos”, “Psicopatologia da vida cotidiana” tornam-se acontecimento.

A teoria do inconsciente formulada pelo Dr. Freud, através de escuta clínica dos diferentes modos de sofrimento psíquico, atravessou as fronteiras da Áustria e despertou interesse de médicos psiquiatras de vários países da Europa Ocidental e Oriental (já havia tradução em russo no início do século 20). Em 1909, Freud e seus amigos (Carl Gustav Jung, Sándor Ferenczi, Ernest Jones) cruzaram o oceano atlântico e conquistaram a América do Norte. Reza a lenda, que Freud disse aos companheiros de viagem: “Eles não sabem que estamos trazendo a peste”.

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Arte e Loucura: interfaces

A arte como forma de expressão da loucura e lugar de sua continência ocupou a cena central no movimento surrealista da década de 1920. Imersos no cenário desolador pós Primeira Guerra Mundial e a Revolução Soviética de 1917, os surrealistas marcaram profundamente o destino da literatura, das artes plásticas, da filosofia e da psicanálise nas décadas seguintes. Toda uma geração de escritores, pintores, dramaturgos, além de médicos psiquiatras tomaram parte nesse movimento de vanguarda artística. Surgindo daí o movimento antipsiquiátrico e da luta antimanicomial.

André Breton e Tristan Tzara travaram um duelo de grandes proporções na história da cultura contemporânea. Para além das posições antagônicas no que dizia respeito ao compromisso do movimento com as causas da revolução marxista, os baluartes do surrealismo estavam atentos às novas possibilidades de interpretação do mundo, da matéria e do humano. É nesse sentido que os nomes de Einstein, Heisenberg e Freud foram invocados pelos surrealistas para fundamentar seu projeto revolucionário: proclamar a ruptura da arte com a lógica e por conseqüência interrogar as práticas de internamento dos doentes mentais. O livro Nadja, publicado por Breton em 1926, é a expressão sublime desse projeto.

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O estado atual da loucura

A obra de Sigmund Freud foi interpretada por Michel Foucault como tendo inaugurado uma nova forma de interpretação que interroga sem cessar a constituição da psiquiatria e demais ciências humanas. Essa posição aparece no artigo de 1964: “A Loucura, a Ausência da Obra”. Iniciou com a seguinte previsão: “Talvez, um dia, não saibamos mais muito bem o que pode ter sido a loucura. Sua figura terá se fechado sobre ela própria, não permitindo mais decifrar os rastros que ela terá deixado”.

Logo adiante, após identificar um ponto de mutação que marca uma descontinuidade na concepção clássica da loucura, Foucault apresentou algumas questões decisivas para nossa atualidade: “qual será o suporte técnico dessa mutação? A possibilidade para a medicina de dominar a doença mental como doença orgânica? O controle farmacológico preciso de todos os sintomas psíquicos? Ou uma definição bastante rigorosa dos desvios de comportamento, para que a sociedade tenha tempo disponível de prever, para cada um deles, o modo de neutralização que lhe convém? Ou ainda outras modificações das quais nenhuma, talvez, suprimirá realmente a doença mental, mas que terão como sentido, apagar de nossa cultura a face da loucura? ”

Reconheceu Freud como o primeiro a romper com os modos de apagamento que o discurso psiquiátrico impôs à loucura. Com Freud, a loucura deixou de ser falta de linguagem, blasfêmia proferida ou significação intolerável. Por isso, proclamou ser preciso um dia fazer justiça a Freud.

Freud instaurou uma discursividade (a psicanálise) e toda uma rede de proliferação de sentido pôde ser produzida. Como autor, criou a possibilidade e a regra de formação de outros discursos que, ao se remeterem à psicanálise, não poderão mais sustentar sua validade por um recuo ao sentido originário. Por isso, não tornou possível apenas certo número de analogias, tornou possível certo número de diferenças ao abrir o espaço para outra coisa diferente dele e que, no entanto, pertence ao que ele fundou.

O pressuposto adotado pela psicanálise é que os fenômenos considerados normais, tais como: atos falhos, lapsos de linguagem falada ou escrita os sonhos, podem ser compreendidos como parte de um conjunto que envolve os fenômenos patológicos: as crises convulsivas, delírios, visões, ideias ou atos obsessivos, conversões histéricas. Ou seja, os processos normais e os descritos como patológicos seguem as mesmas regras de causalidade psíquica. Assim, a primeira linha que demarca o território da psicanálise significou um apagamento das fronteiras entre o normal e o patológico.

A psicanálise rechaçou, até agora, a referência da tópica psíquica a uma localização anatômica (o cérebro como centro das atividades psíquicas). De igual modo, rechaçou qualquer referência a uma estratificação histológica (como as determinações genéticas). Freud solicitou de seus leitores que evitassem a tentação de buscar uma base anatômica para o aparelho psíquico. Advertência fundamental para todos que pretendem circular no território da psicanálise e evitar o canto da sereia de nossos tempos: as neurociências.

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro no projeto “Conhecimento para Todos” do Instituto Justa Trilha Brasil

http://www.justatrilha.org.br/