As alegrias de Goethe em Nápoles – 2

Após o inicial passeio pelas ruas da capital do sul da Itália, Goethe escreveu à sua amada: “Perdoei a todos que perdem a cabeça em Nápoles, e lembrei-me comovido de meu velho pai, que preservou uma impressão indelével das coisas que viu por aqui e que hoje pude ver pela primeira vez. Muitas vezes o ouvi dizer que nunca mais seria de todo infeliz porque se lembraria sempre de Nápoles”.

napoles

A Viagem à Itália contém recortes além de cartas enviadas aos amigos de Weimar, anotações em estilo diário e redação final para publicação em 1816. Com habilidade poética, Goethe registrou as emoções vividas, os cenários observados, o encontro com a arte clássica do Renascimento. Dado meu oficio, na leitura do relato, procuro colher a percepção sensível do escritor quando descreve seu estado psíquico e a psique dos italianos que encontrava pelo caminho.

Tenho reiterado nessa série que a viagem à Itália em 1786 foi deliberada pelo acalentado desejo do poeta em reviver os passos de seu amado pai em território italiano. De igual modo, vivenciar um renascimento espiritual representado na metáfora de uma odisseia existencial. Não é sem motivo que o livro escolhido para acompanhá-lo na viagem ao sul foi A Odisseia de Homero. Ulisses é o herói eleito como companheiro de viagem.

“Nápoles é um paraíso, todos vivem numa espécie de esquecimento embriagado de si próprios. Assim é comigo também. Vivo numa espécie de estranhamento; pareço a mim mesmo uma pessoa totalmente diferente. Ontem pensei comigo: ‘ou você era louco antes, ou tornou-se agora’”.

Resgatando a metáfora inicial destas apresentações do livro Viagem à Itália (Cia das Letras), afirmei que Nápoles representa o tempo da sobremesa no grande banquete que foi a peregrinação do poeta por terras italianas. Depois do prato principal na estadia em Roma, partir em direção ao sul era um retorno ao estado natural, o encontro com a natureza. Diferente do norte, construído sob o signo das artes, no sul pouco havia para ser apreciado em termos estéticos.

A imagem do paraíso é constante nos relatos da viagem ao sul. “É somente nessa região que se aprende o que é, de fato, vegetação e por que razão se cultiva a terra. Se em Roma me dediquei com afinco em estudar, por aqui quero apenas viver, usufruir, esquecer de mim mesmo e do mundo. É uma agradável sensação peculiar conviver com pessoas dispostas tão somente a gozar a viva”.

“Somente aqui se pode compreender como pode o homem cultivar a terra; aqui é terra onde tudo germina: pode contar com 3 a 5 colheitas por ano. Ouvi dizer que nos melhores anos chegou-se a plantar milho 3 vezes na mesma terra”. Goethe encontrou na vida campesina dos agricultores do sul o protótipo do bom selvagem preconizado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau.

Pouco antes de partir para a Sicília escreveu: “Não fosse pela minha índole alemã para o trabalho em vez de gozar a vida, eu talvez devesse permanecer por mais tempo em Nápoles e aprender mais nesta escola do viver com leveza e alegria, buscando tirar da natureza e da vida o maior e melhor proveito. É deveras prazeroso estar aqui. A localização e o clima ameno superam todo e qualquer louvor, mas isso é quase tudo que um estrangeiro pode contar”.

As descrições dos estados afetivos envolvidos na decisão de atravessar do porto de Nápoles ao porto de Palermo são ingredientes importantes para o leitor capturar o conflito no qual se encontrava o poeta.

Na carta de 16/03/1787 confessou à baronesa Charlotte von Stein: “Tenho duas semanas para decidir se vou a Sicília. Nunca antes oscilei dessa maneira tão estranha na tomada de uma decisão. Dois espíritos brigam por mim: um diz que devo partir, outro exige que eu fique aqui e retorne a Roma”. No dia seguinte: “Quanto à minha viagem a Sicília, os deuses têm ainda nas mãos os dois pratos da balança, o fiel oscilando entre um lado e outro”.

Eis que a decisão se faz ato: adquiriu um camarote numa corveta com destino a Palermo, a capital da ilha. Sendo a primeira viagem marítima do escritor, em sua indecisão, atuava a angústia frente ao desconhecido. “A dúvida em ir ou ficar atrapalhou minha estadia aqui; agora estou aliviado e certo de que esta viagem a Sicília me fará muito bem e é mesmo necessária, poder estar no maravilhoso centro para onde convergem tantos raios da história mundial não é pouca coisa”.

Embarcou com advertência sentenciada: “Quando nos lançamos no mundo e com ele nos envolvemos, melhor é que nos cuidemos para não nos deixarmos desviar ou desvairar”.

 Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 22/mar/2015