A vontade de saber: biografias (4)

Outro dia, a escultura do peixe na entrada da cidade amanheceu com a pichação em exclamação: “Marighella, vive”. No mesmo dia, em São Paulo, na rua em que o Deputado Federal Carlos Marighella foi brutalmente assassinado em 1969, a viúva Clara Charf, com um olhar de saudade do homem que amou, estava no local prestando homenagem aos 44 anos da morte do maior líder da resistência à ditadura militar.

 As duas imagens reverberaram em minha memória a cena da noite de intenso calor quando ouvi a notícia na TV da morte do Marighella. A imagem de um homem morto dentro de um “fusca” colou-se ao sobrenome do meu pai que estava em viagem de trabalho. Minha mãe só ouviu a associação homofônica e deu um grito: “Seu pai morreu”. Em estado de choque fiquei observando a seqüência do mal entendido: ela desmaiando, vizinhos socorrendo e todos querendo saber o que estava acontecendo. Como a única televisão no bairro era na minha casa, não havia como desfazer o equívoco homofônico. Um tio, também funcionário da empresa, foi acionado para esclarecer que o Marighella assassinado não era meu pai.

O efeito traumático retornou quando fiz o alistamento militar em 1978. Narrei um trecho autobiográfico, publicado aqui no JP em 2009 (disponível no site abaixo com o título O Nome do Pai), da genealogia desta homofonia entre os sobrenomes da minha família e da família do Marighella. A grafia do meu sobrenome foi abrasileirada. A vontade de saber levou-me a descobrir que meu bisavô veio da mesma região da Itália, provavelmente no mesmo navio que o pai do Carlos.

Por diversas vezes sou interrogado: “Você é parente do Carlos Marighella?” Depois de ler Marighella: o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo ( Cia das Letras, 2012), escrito pelo jornalista Mário Magalhães, comecei a responder que sim: sou parente, por adoção. Eu o adotei como tio. Alegra-me esta identificação de parentesco imaginário. Há parentes por linhagem sanguínea e há os que elegemos por afetividade, identidade de valores e sonhos em comum. O livro é a mais extensa e sensível biografia do líder da esquerda brasileira. Merecidamente agraciado com o prêmio Jabuti 2013, a biografia construiu um retrato emotivo, demasiado humano, do deputado constituinte eleito na Bahia em 1946. Como um brado guerreiro inspirado nas clássicas tragédias gregas, Marighella vai se tornando um herói para o leitor. O autor não tem pudor em expor seu amor à vida do homem que escolheu para narrar a história política do Brasil desde a ditadura civil de Getúlio Vargas à ditadura militar pós 1964.

Uma cena marcante: fevereiro de 1956, na reunião do Partido Comunista, Marighella fica sabendo das atrocidades cometidas pelo líder soviético Ióssif Stálin. A derrocada do líder idolatrado à condição de sanguinário tirânico foi vivida por Carlos como um evento traumático sem precedentes: “Marighella desmoronou. Para ele, o tormento não seria apenas a mutação

de Stálin em tirano: tudo o que vivera desde os verdes anos na Bahia parecia não fazer sentido. Clara nunca o vira chorando. Redatora da ata, ela trabalhava como taquigrafa em uma mesinha e sofria por si e pelo marido. ‘Era como se tivesse desabado o prédio’, comparou. Sob os escombros da decepção, as lágrimas inundaram o rosto de Marighella. Buscou forças, levantou-se da cadeira e caminhou até o lado da mesa que conduzia a sessão. O tribuno de talento tentou alinhavar uma frase à outra, engasgou, sucumbiu com soluços e se desidratou de tanto chorar.”

O homenzarrão que foi preso e torturado na ditadura do Estado Novo, nunca havia derramado

uma lágrima. Os companheiros da época, entrevistados pelo biógrafo, descreveram o seu estado psíquico: ar triste e lamentoso; dava a impressão de um menino cujo brinquedo se quebrara; completamente desorientado; solitário e lúgubre; com depressão nervosa; passava as noites em claro inconsolável, chorando como criança de peito. O amigo Jorge Amado recordou que ele havia perdido “a graça e o riso” — sua característica mais notável.

Convencido a procurar um psiquiatra ligado ao Partido, foi diagnosticado com estresse emocional e, como tratamento, repouso e remédios tranqüilizantes. Ao recusar tomar o psicotrópico, ouviu do médico: “Carlos, você toma o remédio. Você esta mal de saúde. Quem

é que não toma quando tem uma morte na família?” Era bem isso: a notícia dos campos de concentração na Sibéria foi recebida como a morte de um pai, um ente querido. Como suportar a dor da decepção, a queda de um herói revolucionário? O stalinismo de Marighella havia ruído e, desta comoção em estado de luto, Carlos renasceu tal como uma fênix. “De volta do estupor,

Marighella considerou que o problema não estava na razão de viver desde a juventude, e sim nos que haviam usurpado a bandeira do comunismo”. Reascendeu nele as chamas da justiça social que incandesceu a vida deste filho de italiano com uma negra haussás, descendente de escravos trazidos do Sudão. Marighella viverá sempre na memória daqueles que defendem a justiça como um valor civilizatório.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 24/nov/2013

ilustração: Erasmo