A vontade de saber: biografias (3)

No filme Leolo (1992) o diretor Jean-Claude Lauzon declarou seu amor aos livros: “tudo o que peço a um livro é que me dê energia e coragem, que me diga se há mais vida do que posso ter e que me lembre de que é urgente agir”. Esta poderia ter sido também a exigência do jovem holandês Vincent Van Gogh aos livros. Leitor voraz, escritor sublime, pintor incandescente, Vincent (como pedia para ser chamado) teve sua vida esquadrinhada pelos biógrafos depois que sua arte foi reconhecida como revolucionária.

Após sua morte em julho de 1890, seu amado irmão Théo faleceu subitamente no ano seguinte. Na seqüência, a viúva do irmão publicou numa revista em Paris, fragmentos dascartas de Vincent a Théo. Em 1914, elas são publicadas na íntegra na Holanda. A primeira biografia de Vincent foi escrita por Julius Meier-Graefe em 1922. Irving Stone, biógrafo americano, publicou em 1934, Sede de Viver, um relato ficcional (romance biográfico) que se tornou “best-seller”, imprimindo à imagem do tiro fatal no campo de trigo: a última tela pintada. O livro de Stone foi adaptado para as telas de cinema em 1956 e coube ao magistral Kirk Douglas o papel de interpretar o pintor holandês. O filme (disponível no Netflix) dirigido por Vincente Minnelli venceu o Oscar e se tornou referencia para os cinéfilos.

No conjunto, Cartas a Théo é um testamento autobiográfico. Começam em Londres em julho de 1873 e percorre todo trajeto existencial do pintor até julho de 1890: uma verdadeira epopeia para Vincent construir sua identidade como artista. Théo, irmão mais novo, foi a única referencia afetiva do pintor. Em cada carta, o retrato de um trabalho em construção. Na carta que tinha consigo no dia em que foi baleado, escreveu: “em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte”. As últimas palavras escritas, o epíteto final. Desde então, estabeleceu-se uma versão hegemônica: Vincent se suicidou com um tiro no peito. Todos os biógrafos, partindo deste desfecho trágico, reconstruíram a trajetória da vida dilacerante deste homem: sua saga heróica no mundo da pintura moderna.

Em 1990, David Sweetman tornou publico sua minuciosa pesquisa: Vincent Van Gogh: uma biografia. Não só reafirmou a versão do suicídio, como forneceu informações que legitimavam esta suposta verdade. Considerou que era preciso retornar às próprias palavras do pintor, expressas nas Cartas a Théo, para descobrir a verdade de sua vida. O biógrafo britânico declarou: “Aqueles que todo mundo chama de louco são em geral repelidos ou escarnecidos, e Vincent experimentou as duas reações quando se aproximava do fim. No século que decorreu desde seu suicídio, passamos a admitir que sua obra, mais do qualquer um de seus contemporâneos, fala direitamente a nós. Ele foi um amante apaixonado da arte de seu tempo, uma arte agressivamente rejeitada pelos fundadores do movimento moderno. Somente hoje, quando o modernismo é visto como mais uma escola, podemos começar a lançar, sobre a vida de Vincent, um novo olhar”. Embora o livro tenha boa narrativa, o olhar não foi nada novo.

Foi preciso esperar até 2011 para que um novo olhar sobre a vida de Vincent pudesse vir à luz. Steven Naifeh e Gregory White Smith, dois pesquisadores formados em Harvard, apresentaram Van Gogh: A Vida (publicado no Brasil pela Companhia das Letras) para subverter a versão hegemônica do suicídio. Sugiro iniciar a leitura de mil páginas pelo apêndice, “Nota sobre o ferimento fatal de Vincent”, onde se encontra a justificativa para a tese central do livro: Vincent foi baleado acidentalmente (bala perdida) por um garoto que estava caçando passarinho com pistola calibre 38, surrupiada do pai. René Secrétan de 16 anos e seu irmão Gaston, passavam as férias escolares na casa de campo da família em Auvers-sur-Oise (noroeste de Paris), lugar onde Vincent morava. Conheciam o esquisito pintor de cabelos cor de crepúsculo que pintava as paisagens da redondeza. Por vezes, acompanhavam o holandês pelos campos de trigo na região.

A nova versão surgiu em 1956, quando o próprio René (na época com 82 anos) resolveu contar o que ocorreu no dia em que Vincent foi baleado. Com este depoimento e o relato de Madame Liberge, filha do senhor que socorreu o pintor, os biógrafos reconstruíram a cena fatal. Porque Vincent não disse a verdade ao policial que foi chamado para averiguar? Entre o tiro e a morte houve um intervalo de tempo e ele estava consciente. Os biógrafos consideram que o silencio do pintor foi um modo de proteger os garotos: um gesto de amor. A versão do suicídio foi construída e o inquérito encerrado. Como ele era chamado de louco mesmo, a versão era bem apropriada. Morto em vida por não obter reconhecimento público do valor de seu trabalho artístico, Vincent (com seu silencio) aceitou seu fado e saiu da vida para entrar na história como um gênio incompreendido e extemporâneo.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 17/nov/2013

ilustração: Erasmo