A travessia de Goethe na Sicília

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Ao pôr-do-sol o poeta alemão partiu de Nápoles numa corveta em direção ao porto de Palermo, extremo sul da Itália. A travessia marítima era o coroamento, o ápice do percurso e, ao mesmo tempo, a primeira experiência de viagem pelo mar. Ao desembarcar, escreveu: “se existe algo decisivo para mim nesta longa vigem pelo território italiano foi ter chegado até a Sicília, a rainha das ilhas. Quem nunca se viu rodeado pelo mar não tem ideia do que seja o mundo e sua relação com ele”.

A travessia com “o gracioso e simpático veleiro” marcou a composição da peça Torcato Tasso, narrando a trajetória existencial do poeta renascentista italiano. Desde o norte, Goethe percorreu o território italiano, no final do século 18, a bordo de diferentes carros puxados por cavalos. Lançar-se ao mar exigiu um ato de coragem pois iria se aventurar numa situação desconhecida e promotora de angústia.

Procurou cercar-se de informações sobre o capitão e as condições do navio: “essa pequena travessia ampliará meu mundo. Para uma índole como a minha, essa viagem é saudável e necessária. O capitão é um homem jovem e alegre; o navio, gracioso e simpático, construído na América, um bom veleiro”.

Assim que partiu, descobriu o mais elementar: a viagem dependia de uma contingência natural, o vento. “Só em ato percebi que o marinheiro está à mercê da teimosia do tempo e do vento”. E ambos não estavam favoráveis à travessia do poeta até a Sicília. Tempestade e ventos contrários tornaram o percurso pelo mar Tirreno, a parte do Mediterrâneo que se estende ao longo da costa oeste italiana, uma grande aventura.

O poeta passou o maior tempo na pequena cabine em posição horizontal com forte enjoo e, nauseado, se impôs uma dieta de pão branco e vinho tinto. Confinado aos solavancos do veleiro, “apartado do mundo exterior, dei livre curso aos pensamentos e construí a peça Torcato Tasso. Munido de novas concepções, permiti que a forma imperasse o ritmo surgisse”.

Os dois atos, escritos a uma década atrás, já não faziam mais sentido e aproveitou a ocasião da travessia para destruí-los. Em Nápoles disse que “as personagens, o plano e o tom da composição da peça, não possuíam o menor parentesco com suas intenções atuais”. No diário de bordo afirmou: “De todos os meus projetos de trabalho, trouxera comigo para a travessia até a Sicilia apenas os dois primeiros atos do Tasso, escritos em prosa poética. Eles são similares à versão atual apenas no enredo e desenvolvimento”; a forma e o ritmo mudaram por completo.

Para além da travessia marítima, há também uma travessia no estilo do escritor. Dois exemplos sublimes deste deslocamento estilístico podem ser reconhecidos na composição das peças: Efigênia em Táuris, concluída na estadia em Roma; e Torcato Tasso, concluída na Sicília.

No domingo de páscoa, Goethe foi convidado para o almoço com o vice-rei e sua corte. A descrição do evento é digna de nota: “depois de passar a manhã visitando diversas igrejas e contemplando os rostos e figuras do povo siciliano, dirigi-me ao palácio. Como cheguei cedo, um homenzinho alegre veio até mim saltitando e falando, mais parecia um maltês. Quando soube que eu era alemão, perguntou notícias de várias pessoas de Weimar: ‘e como vai aquele homem, jovem e caloroso que era capaz de fazer chover na cidade? Esqueci seu nome, mas bastará dizer que se trata do autor dos Sofrimentos do Jovem Werther’. Após breve pausa respondi: ‘a pessoa sobre a qual o senhor muito gentilmente pergunta sou eu mesmo’. Com evidente espanto, ele recuo e exclamou: ‘então muita coisa deve ter mudado!’ ‘Ah, sim! Entre Weimar e Palermo passei por muitas mudanças’, respondi”.

O livro Viagem à Itália contém o registro histórico da experiência mística chamada metanóia: mudança essencial de pensamento ou de caráter, transformação espiritual. O mais genial poeta da modernidade alemã realizou uma viagem de formação pelo território italiano. Enlaçando sua memória infantil do relato de viagem de seu amado pai pela Itália ao desejo de conhecer o monumental berço da arte renascentista, vivenciou   um cenário onde a natureza exuberante embriagava, por excitação, os sentidos.

No sul descobriu enfim que “o refinamento e o mau gosto não brotam diretamente de um único homem ou de uma única época: para ambos pode-se, com alguma dedicação, construir uma árvore genealógica que nos conduza a sua origem. Não sou, afinal, senão um antepassado dos que virão com o futuro, quer na vida, quer nesta viagem. A Itália sem a Sicília não forma em meu espírito um quadro completo. Somente aqui encontrei a chave para o todo”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 29/mar/2015