Seguimos catalogando as paixões. Dado o soberano valor atribuído ao amor, vamos abordá-lo pela linhagem (linguagem) paterna. Nossa referência é o mito, pois ele contém a primeira forma de representação das paixões. Muito antes da emergência do pensamento filosófico na Grécia (século 4 a.C) e do pensamento científico (século 17), os humanóides contraíram e construíram narrativas mí(s)ticas para designar as paixões.
Nas edições anteriores da Arraso destaquei a filiação de Eros e sua transmissão pela língua materna. O ponto de ancoragem dessas reflexões nos foi transmitido por Platão no diálogo O Banquete. Relembrando: cada um dos convivas deveria fazer um elogio ao deus Eros. Estrategicamente, Platão deixou Sócrates por último. E, é claro, o irônico personagem arrasa. Sócrates contou ter ouvido de uma mulher, Diotima (sacerdotisa do templo de Afrodite) a seguinte história da fecundação de Eros: num banquete em comemoração o nascimento de Afrodite (deusa da beleza e dos prazeres), Póros se embriagou do néctar e adormeceu no jardim da morada de Zeus. Por ali perambulava Pênia, em sua penúria, nutria a esperança de recolher as migalhas do festim. Ao ver o belo Póros adormecido desejou ter um filho dele. Deitou-se ao seu lado e concebeu Eros, o deus do Amor. Eros é filho de Pênia com Póros.
Póros significa passagem, caminho, via de comunicação, ponte, conduto e; também recurso, fartura, excesso, transbordamento. Pênia significa miséria, pobreza, penúria, carência, falta. Esta etimologia transparece na escrita de Platão: “Sendo o Amor sempre pobre, duro, seco, descalço e sem lar, deitando-se ao abrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe. Do pai herdou a beleza, a coragem, a decisão enérgica, caçador terrível, ávido de sabedoria e cheio de recursos a filosofar como um mago, feiticeiro e sofista. E não é nem mortal nem imortal; no mesmo dia ele germina e morre para voltar a renascer. Ele esta entre a sabedoria e ignorância: é um daimon (mediador)”.
O que é próprio da função paterna na transmissão do amor? A resposta pode ser encontrada no que Platão designou como herança paterna do amor. Da mãe, o desejo; do pai, a coragem. Para desejar é preciso coragem. Abdicar do desejo é covardia. Após ter destacado a transmissão do amor pela língua materna, vamos agora desenhar sua transmissão pela língua paterna. Sim, há UM pai. Sua presença física não é imprescindível, pois alguém haverá de ocupar a função paterna. Também não depende do gênero ou da genética. A existência do pai é determinada pelo exercício da função paterna: está para além da transmissão genética.
Deus, por exemplo, é chamado Pai, invocado para representar a função paterna (Nome-do-Pai): criar, prover, zelar ensinando a criatura humana a ser livre, ser capaz de cuidar de si mesma e de outros por extensão, semelhantes ou não. A língua paterna é ato de criação. E Deus disse… e o ser materializa a existência: a potência se faz ato. O fundamento da tradição patriarcal é a potência de criar e cuidar para que a criação possa transmitir o nome: pai, o criador.
A história da cultura nos ensina que o reconhecimento científico da paternidade é bem recente. Até o advento dos testes de microbiologia o pai é sempre nomeado pela mãe, em afirmativas definitivas como: “Este é seu pai”, “Estou esperando um filho seu”, “Vou ser mãe e você vai ser pai”. Ao homem, só restava acreditar e cuidar ou não dos proventos da cria em andamento. Para além do dado biológico, a paternidade (o que é ser pai?) é o exercício de uma função social e historicamente determinada. Isso porque, a prova científica dos ovários é de 1668 e a do espermatozóide (no microscópio) em 1674; o processo de fecundação, tal como o conhecemos, foi consolidado em 1875.
No livro A Família em Desordem, Elisabeth Roudinesco reconstruiu historicamente o exercício da função paterna: “O pai é aquele que toma posse do filho, primeiro porque seu sêmen marca o corpo deste, depois porque lhe dá o seu nome. Transmite ao filho um duplo patrimônio: o do sangue, que imprime uma semelhança, e o do nome, que confere uma identidade, na ausência de qualquer prova biológica e de qualquer conhecimento do papel respectivo dos ovários e dos espermatozóides no processo da concepção. O pai é reputado pai na medida em que supõe que a mãe lhe é absolutamente fiel”.
No plano psíquico, a função paterna é representada pela eficácia simbólica da lei que interdita, diz não, determina o limite. “O pai não é, portanto um pai procriador senão na medida em que é um pai pela fala. E esse lugar atribuído ao verbo tem como efeito ao mesmo tempo reunir e cindir as duas funções da paternidade (pater e genitor), a da nomeação e a da transmissão”. A função paterna é eficaz na medida em que assegura ao filho uma marca, um corte que o distingue: filho de um pai.
Há o pai real, o pai simbólico e o pai imaginário. Em cada um, há um modo distinto de eficácia na constituição do filho. Jacques Lacan, em seu retorno a Freud, ensinou que o pai simbólico é o exercício do Nome-do-Pai como mediador essencial e necessário para o desmame: condição para que a criança sai de seu puro e simples acoplamento com a onipotência materna. O Nome-do-Pai é essencial a toda articulação de linguagem no mundo humano. A língua paterna inscreve a interdição ao livre acesso da criança à mãe. Aos poucos e com muito custo, a criança vai convivendo com a condição de castrada: separada da mãe, desmamada.
“É preciso ter o Nome-do-Pai, mas é também preciso que saibamos servir-nos dele. É disso que o destino e o resultado de toda a história podem depender”. Profético, Lacan destacou a condição ética para o cuidado de si: servir-se do Nome-do-Pai. Observemos que o verbo está na posição ativa: eis o banquete, sirva-se. É bem diferente de servir o Nome-do-Pai: aqui a posição é passiva, estar a serviço dele na condição de servo, servil.
O lugar do pai na transmissão do amor pode também ser encontrado no mito apresentado por Platão. A língua paterna do amor é a transmissão do princípio de mediação. Criar é cuidar para que a criatura possa efetivar a potência criadora: um filho ampliando os laços instaurados pelo pai. É nesta perspectiva que Eros foi representado como um daimón: potência divina responsável pela mediação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. O amor é a potência que faz laço, enlaça, põem em relação. A língua paterna do amor é sua potência de criar laços para além da relação mãe-criança. O pai transmite o amor ao interditar a tendência fusional e indistinta da criança com a mãe. A eficácia desta interdição é sua potência de mediação.
fonte: Revista ARRASO / Estilo – Ano 6, nº 38, 2014 – Publicação do Jornal de Piracicaba
ilustração: Erasmo Spadotto