A História do Olho em Sevilha (1)

Com o imaginário de Sevilha, inundado de expectativa desejante desde que me encontrei com El Burlador de Sevilha, peça teatral atribuída aos escritos do padre Tirso de Molina, publicado em 1630,aguardava a chegada do dia em que pudesse contemplar Sevilha. Somado a isso, vieram o prazer estético com as óperas Carmem de Georges Bizet e O Barbeiro de Sevilha de Gioachino Rossini ambientadas neste encantador porto andaluz e o livro A História do Olho, novela erótica escrita por Georges Bataille em 1927.

 

 Cenário de referências estéticas determinantes na modernidade, Sevilha é um porto no rio Gualdaquivir irradiando cultura por toda a península andaluza. Criando o cenário, registro do meu olhar, comento nesta série os dois livros citados: O Burlador de Sevilha (gênese de Don Juan, o mito moderno) e a História do Olho (gênese do erotismo na literatura de Bataille).

Um palacete restaurado como hospedaria (Hotel Petit Palace Marques de Santa Ana, recomendável) serviu de base para a expedição: no roteiro imaginário, conhecer os lugares cenografados na escrita literária e musical. Impressionado pelo labiríntico das ruas estabeleci algumas coordenadas geográficas. Um passeio de coche permitiu estabelecer escolhas para visitação. Sevilha estava fervilhando. As praças, as ruas sinuosas, as casas de tapas, os espaços estavam tomados por uma multidão de todas as idades. Nunca vi tamanha concentração de carrinhos de bebês por metro quadro. Famílias inteiras vagueavam pelas

ruelas, dia e noite sob frio de 5 a 10 graus. Só então descobri: estava numa grande e religiosa festa familiar, A Cabalgata de los Reyes Magos.

O cortejo partiu da Universidade de Sevilha, situada no prédio da antiga Fabrica Real de Tabaco (cenário legendário da ópera Carmem). Percorreu várias regiões históricas, atravessando a Puente de Isabel 2, seguindo para Triana (bairro popular localizado na outra margem do rio). Retornando pela Puente de lós Remedios, finalizou na Universidade. É um grande espetáculo tradicional de união familiar: crianças enfeitadas sobre carros alegóricos atiram caramelos e guloseimas sobre o público expectador como símbolo de fartura e boa sorte. Bandas musicais (estilo fanfarra), formadas por escolares, animavam as caravanas antecipando a passagem do trono de Melchior, Baltazar e Gaspar — os Reis Magos seguidores da estrela brilhante. Um tapete de caramelos, pisoteados por cavaleiros e carros alegóricos ficou como rastro e resto da festa infantil familiar. Após o desfile, os núcleos familiares retornavam aos seus lares para trocar presentes e saborear a “torta de los reyes”: vendida aos milhares em toda esquina.

A epifania, festejada no suposto dia em que os Reis Magos encontraram com o menino Jesus, é um aspecto interessante para marcar a presença fulgurante da cultura árabe na Andaluzia. Os beduínos que desfilavam no cortejo faziam parte do esquadrão de proteção a cada um dos Reis. Seus trajes e a cor da pele demonstravam suas origens: magos do oriente, carregando os presentes (incenso, ouro e mirra) ao Deus menino. Presentes que os espanhóis receberam, naquela manhã de inverno, com a manchete no maior matutino do país: Os Reis Magos são chineses: a China anunciou que vai comprar parte da dívida interna espanhola.

No dia dos Reis Magos também se comemora Nuestra Señora de lós Reyes, patrona de Sevilha e da Arquidiocese. Em meio à festa, com feriado, ainda consegui visitar a Catedral e sua magnífica Torre La Giralda; a Plaza de Toros de la Real Maestranza; a Torre do Ouro, abrigo do Museu Naval e, a exuberante Plaza de España. Sevilha é um espetáculo, uma cidade monumental: seu patrimônio histórico sobreviveu icólume as guerras mundiais. Sua história remete aos Imperadores Trajano e Adriano em seus propósitos expansionistas.

A cidade murada ao estilo das construções romanas: ruas com casas chamadas “domus”, residências de uma família. Com o controle das navegações pelo mediterrâneo, os impérios árabes-muçulmanos foram se estabelecendo na Península Ibérica. Córdoba e Sevilha foram grandes centros de irradiação da cultura e comércio árabe. Artigos de luxo (tapetes, veludos, sedas, porcelanas, moveis, jóias, perfumes, etc) transportados em embarcações e caravanas partiam de Sevilha para abastecer todo norte da Europa.

O rio Guadalquivir foi o verdadeiro motor de Sevilha. O primitivo rio Tartessos, chamado pelos romanos de Betis e os árabes, Wadi al-kabir (rio grande). Nascente na Serra de Cazorla, as águas caudalosas percorrem 590 km de terras andaluzas até chegar à costa atlântica. Este rio acolhe ao único porto fluvial de Espanha, situado a 80 quilómetros do Atlântico e muito próximo do Mediterrâneo. Deste porto partiu a embarcação de Cristovão Colombo rumo às Américas.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,16/fev/2014