O discurso amoroso: um fragmento

Para que os enamorados, em ato de casamento, possam encontrar inspiração na afirmação do desejo que os move, faço coro à celebração no centenário de nascimento do escritor Roland Barthes relembrando seu livro Fragmentos do Discurso Amoroso publicado em 1977.

O livro é um breviário com verbetes designando o discurso amoroso. Breviário é o livro de orações, salmos, antífonas. Por derivação, é o livro que se está sempre a ler; o livro predileto. Barthes escreveu uma sinopse do discurso amoroso entrelaçado em citações e referências à história da filosofia e literatura. Numa sucessão antifonar aparecem os nomes de autores com quem compôs o elogio ao amor em ato de amar.

Barthes criou estilo como escritor fazendo do seu oficio hermenêutico um modo de produção poética, transitando pela filosofia, semiologia e crítica literária. Eleito docente no Collége de France, suas aulas atraíam legião de jovens estudantes do campo das Ciências do Espírito, também chamadas Ciências Humanas. A exposição Roland Barthes Plural (Casa das Rosas, av. Paulista, São Paulo, até 20/09) reconstrói a trajetória intelectual do autor e sua influência no trabalho no Brasil a partir da década de 1980.

O Grau Zero da Escrita é o primeiro livro de Barthes, publicado em 1953. Nele pode-se encontrar a gênese de seu percurso como escritor. Ousadamente iniciou com a questão, para sempre enigmática a todo escritor: o que é a escrita? A resposta aparece na interface entre a língua e o estilo: “a identidade formal do escritor só se estabelece verdadeiramente fora da instalação das normas da gramática e das constantes do estilo. Língua e estilo são forças cegas; a escrita é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escrita é uma função: é a relação entre a criação e a sociedade”.

É no discurso amoroso que se reconhece a função da escrita. Ele é o tênue equilíbrio estético entre o ato de criação do amor e sua vinculação aos enunciativos socialmente instituídos. De modo que podemos identificar a história do amor nas sociedades ocidentais e orientais. História do Amor no Ocidente de Denis de Rougemont; e História do Amor no Brasil, da historiadora brasileira Mary Del Priore, são exemplos de tais enunciativos.

O amor é objeto do discurso amoroso tecido em palavras. No esforço contínuo de significar o estado afetivo que vincula o amante ao ser amado, o amor é criado e recriado como afirmação do sublime: “Há duas afirmações do amor. Primeiro, quando o apaixonado encontra o outro, há afirmação imediata (deslumbramento, entusiasmo, exaltação, ser devorado pelo desejo e a impulsão de ser feliz). Desta afirmação segue um longo túnel: o sim primeiro é ruído pelas dúvidas, o valor amoroso é a todo instante ameaçado de depreciação; é o momento da paixão triste, do ressentimento e da oblação. Uma nova afirmação é possível como saída deste túnel de incertezas: afirmo o primeiro encontro na sua diferença, quero de volta, não sua repetição. Digo ao outro (antigo ou novo): recomecemos”.

Eu-te-amo é apresentado no Fragmento de um Discurso Amoroso como uma palavra composta que subtrai a identidade psicológica e acrescenta o sujeito em puro verbo intransitivo. A locução cria “uma figura que não se refere à declaração de amor, à confissão, mas ao repetido proferimento do grito de amor. Posso passar dias seguidos dizendo eu-te-amo sem poder passar o eu o amo”.

“Eu-te-amo não tem empregos; é uma palavra que se desloca socialmente. Não tem nuances e dispensa explicações, graus ou escrúpulos. Não tem distanciamento e não é metáfora de nada. Não é uma frase e sim uma holófrase. A palavra só tem sentido no momento em que eu a pronuncio, é irreprimível e imprevisível”. Exclui por princípio o “eu também” como resposta. E inclui “eu-também-te-amo” como demanda de amor.

Fonte:
Revista Arraso / Noivas
Ano 7; nº 54; 2º semestre/2015; publicada por
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
ilustração: Maria Luziano